segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Estado de direito? Idade média - por Mino Carta (Cartacapital)

Alta fonte segreda nos corredores governistas: o relatório final da Operação Satiagraha virá a público no máximo em 60 dias. Obra de uma equipe de técnica apurada e emoções banidas. Ao contrário, se o tema são as emoções, das sensibilidades pretensamente aguçadas do delegado Protógenes.

Desde a Operação Chacal, decorreram quatro anos, e não foram o bastante para acertar as responsabilidades de Daniel Dantas. Formidável demora. Outro habitante dos gabinetes governistas admite, não sem candura, que “as complexidades das relações do banqueiro com os partidos são extraordinárias”. Profundas e capilares.

O orelhudo começou como banqueiro do PFL, passou-se para o PSDB, houve, enfim, o capítulo intitulado mensalão, para que soasse a hora do PT. Sim, as complexidades. Momento crucial, resumo simbólico, aquele em que dois deputados petistas, ao meio da crise, acompanham o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, à casa do senador pefelista Heráclito Fortes para um jantar com Dantas.

Este é o jogo mais recente. O enredo tem, contudo, origem antiga, e entre seus intérpretes graúdos figuram personalidades do porte de Luiz Carlos Mendonça de Barros, André Lara Resende, Pérsio Arida e tantos outros do mesmo peso, sem contar Fernando Henrique Cardoso, também conhecido por seus companheiros de jornada como “a bomba atômica”. Se preciso convocá-lo, seria tão fatal quanto aquela de Hiroshima. No caso, a favor do Opportunity.

Gostaria de evocar Georges Simenon para desenrolar a história, embora a periferia parisiense ou a fronteira franco-belga não tenham as mais pálidas semelhanças com o Brasil dos senhores. Quem sabe valesse chamar Andrea Camilleri, dos romances policiais sicilianos. Creio, de todo modo, que ambos não dispensariam duas figuras, Sérgio Motta e José Dirceu.

Trata-se de estrategistas do futuro dos seus partidos. Tanto um quanto outro chegaram ao poder para segurá-lo pelo maior espaço de tempo possível. Motta soletrava vinte anos, duas décadas tucanas. Há, porém, uma diferença nítida entre eles.

Serjão, como o chamavam os amigos, não era individualista. Preocupava-se com a turma, não digo com a agremiação porque seria demais. Dirceu é infinitamente mais contraditório. Inimigo declarado da burguesia, vive sofregamente como burguês a realidade atual. Seu sonho de poder é, em primeiro lugar, pessoal.

Jamais transitou pela cabeça de Serjão o propósito de ser presidente da República. Já a cabeça de Dirceu tomou a rota oposta. A turma, para ele, tem muito menos importância do que suas particulares aspirações. Surpresa não cabe: o roteiro e seus caracteres são clássicos no sentido mais amplo da expressão.

Na nossa situação, o primitivismo do cenário ajuda, e explica como, em debate promovido na segunda-feira 4 pelo O Estado de S.Paulo, o ministro Gilmar Mendes deite impavidamente falação sobre o Estado de Direito, e se permita insinuações, nem sempre tão insinuantes, sobre os rumos das Operações Satiagraha.

Não há aqui qualquer crítica à iniciativa do jornal, que também contou com a participação do próprio ministro da Justiça, Tarso Genro. Causa pasmo, isto sim, o pontificar do ministro Mendes, juiz de um Supremo onde Dantas diz contar com “facilidades”, já demonstradas largamente nos últimos quatro anos.

Haverá quem diga ser fascista quem discute os dois habeas corpus concedidos por Mendes a Daniel Dantas e Cia., quando presos, sobretudo o segundo. A discussão não é promovida por CartaCapital, mas por eminentes juristas que jamais poderiam ser acusados de fascistas. A única observação é outra: difícil, se não impossível, é falar em Estado de Direito em um país medieval.

Não se surpreendam os leitores se, afastado o delegado Protógenes, o juiz De Sanctis venha a ser alcançado por alguma tentativa de mostrar sua inaptidão para o posto, por causa de problemas peculiares. Da mente ou d’alma. Enquanto isso, um mês após a Operação Satiagraha, os únicos que continuam presos são Humberto Braz, um dos lobistas preferidos de Dantas, e o professor Hugo Chicaroni, mestre pé-rapado.

Na versão de Simenon, ou de Camilleri, Chicaroni seria a personagem patética, a graça do entrecho, o gaiato extemporâneo. Pois ele e Braz foram flagrados na tentativa de subornar um dos delegados envolvidos na investigação. Ofereceram 1 milhão de dólares para que Dantas e sua irmã Verônica fossem excluídos do inquérito. Talvez o ministro Mendes tenha mandado libertar Dantas e manter presos Braz e Chicaroni, por entender terem sido movidos por amizade e afeto ao tirarem do bolso quantia conspícua para livrar o banqueiro das garras da polícia.

Ocorre rememorar o pistoleiro Fogoió, condenado pelo assassínio da missionária Dorothy Stang. Fogoió ganhava a vida matando a soldo. Mas para o júri que absolveu o fazendeiro Bida, acusado de encomendar a execução da freira, foi como se o pistoleiro tivesse cometido o crime por convicção moral ou ideológica. História brasileira típica: o jagunço acabou na cela, enquanto o coronel curte a vida.

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