Dia 26 de junho transcorreu o centenário de nascimento de Salvador Allende, o presidente chileno que tentou resistir, de armas nas mãos, ao golpe militar que visava sua deposição do poder.
Cheguei a Santiago do Chile em julho de 1969, depois de passar por diversas prisões após a edição do AI-5 em dezembro de 68. Meu envolvimento havia sido basicamente com o movimento estudantil, voltado para a resistencia democrática e as lutas pela modernização da Universidade. Quando cheguei ao Chile, jovem ainda de vinte e poucos anos, éramos apenas um punhado de brasileiros que ali haviam encontrado asilo, a maior parte figuras do período pré-64 que haviam encontrado acolhida no governo democrata-cristão de Eduardo Frei. Eu havia conseguido uma bolsa da OEA, a Organização dos Estados Americanos, para cursar o mestrado de economia na Universidade Católica do Chile. O Instituto de Economia da Católica - como dizíamos - era um projeto estratégico das elites chilenas, montado em ligação estreita com a Universidade de Chicago. Foi o berço dos "Chicago's boys", o grupo de economistas que constituiu posteriormente o núcleo econômico do governo de Pinochet e lançou as bases do modelo econômico chileno atual. Foi uma experiencia e tanto sair das lutas políticas no Brasil e mergulhar diretamente no âmago do "cérebro" que preparava o projeto neoliberal para o Chile. A convivencia significou um sofrimento atroz para mim, mas saí dela sabendo como poucos qual era a lógica de funcionamento do modelo que se implantou vitoriosamente no Chile pós-Allende e se espraiou pela América Latina nas décadas seguintes.
Allende era uma figura extraordinária, um político de grande carisma. Viveu sempre a contradição de ser um político que combinava em seu ser a forma tradicional e parlamentar de fazer política - na longa e consolidada tradição republicana chilena-, uma adesão à maçonaria - que tinha muita força política no Chile, forte nos anos 40 a 60 mas ainda presente nos anos 70- e uma paixão pela idéia de Revolução - ainda que concebida de maneira mítica e sonhadora. Em suma, alguém que sabia cativar e seduzir como ninguém, que cultivava a arte da conversa política, que frequentava todas as rodas, mas que se acreditava firmemente um revolucionário latinoamericano. Sonhador de uma Revolução que combinava um vago marxismo com um nacionalismo anti-imperialista, temperada com um sentimento latinoamericanista e forte senso de justiça social. Um dado pitoresco : tinha fama de mulherengo inveterado, fazia até charme com isto, pois agradava ao eleitor médio chileno, fortemente conservador em costumes sociais.
Allende tinha grande apreço pelos brasileiros (aliás, como todos os chilenos em geral).O término do meu mestrado na Católica, coincidiu com a campanha eleitoral que levou Allende ao poder. Vivi intensamente este período e, nos turbulentos dias que se sucederam à posse de Allende como presidente, fui convocado para trabalhar no seu governo, mais especificamente na Corporacción de Fomento de la Produción-CORFO (uma espécie de BNDES chileno). A Corfo acabou sendo utilizada por Allende como o principal instrumento do seu governo para a estatização das grandes empresas e sua gestão. Em função deste período, acabei tendo um contacto mais direto com o Palácio de Governo ( a duzentos metros do qual trabalhava).
O político Allende era o proprio homem cordial, gostava de viver rodeado pelos amigos que fora fazendo no curso da sua longa carreira política. E era muito ligada às filhas, em especial sua filha Beatriz que foi trabalhar com êle no próprio Palácio como uma espécie de assessora especial. Beatriz vinha de uma militancia política na ultra-esquerda chilena e Allende meio que delegou a ela servir como canal de ligação com estes movimentos ultras. A equipe central que Allende constituiu como núcleo do seu governo era composta por representantes ou indicados dos partidos que compunham a Unidade Popular. A UP, como a chamávamos, era na verdade uma grande coligação que agrupava os dois partidos mais fortes - o Socialista, do próprio Allende, uma espécie de PMDB de esquerda com alas que iam desde a esquerda insurrecional até correntes socialdemocratas e populistas, e o Comunista, um partido de base operária fortemente organizado e que atuava, na prática, como o grande centro moderador do governo. Da UP faziam parte também o MAPU - uma dissidencia da democracia cristã de Eduardo Frei de trajetória muito parecida com a da AP no Brasil-, o Partido Radical - apesar do nome, um partido histórico dos maçons do Chile e que tentava nesta ocasião se aproximar da socialdemocracia internacional - e outros partidos menores. Mas Allende tinha também amigos independentes em que confiava, aos quais chamou para ocupar posições chaves no governo. E tinha a ilusão de poder controlar a ultra-esquerda dando-lhe também espaço no governo, além de conformar uma espécie de "guarda-pessoal" (que se mostrou depois um grande ponto de atrito com as Forças Armadas) em base aos guerrilheiros e ex-guerreilheiros do MIR, um partido da ultra-esquerda fortemente ligado à Cuba e à Fidel Castro.
Ao contrário de certa visão que ainda prevalece em algúns analistas do processo chileno, Allende não era um demagogo, em absoluto, se bem que sua figura política pudesse soar um pouco esotérica para o padrão de comportamento dos políticos do pacto liberal-conservador típico desta época na América Latina. Sua ação política pendulava entre a construção de um espaço de diálogo com as forças políticas - mesmo as de oposição - e alguns arroubos revolucionários que levavam a certa radicalização política. Pessoalmente considero que um dos componentes básicos do que veio a resultar na tragédia chilena foi a dicotomia que se estabeleceu entre duas forças progressistas : a democracia-cristã, que pendeu ou foi empurrada para a direita, no processo chileno, e as forças que compunham o núcleo do governo da Unidade Popular, que penderam excessivamente para a confrontação e a tentação golpista de esquerda. Durante três anos Allende tentou se equilibrar na condução do seu governo, ora tendendo para o seu lado "esquerda", ora conciliando via seu lado contemporizador. Quando perdeu totalmente a capacidade de se equilibrar no fio da navalha, instalou-se a ingovernabilidade e o golpe se tornou inevitável.
Há quem atribua à radicalização do processo de estatizações pelo governo da Unidade Popular a causa principal da hostilidade da grande burguesia e das camadas médias chilenas ao governo de Allende. Se bem que é certo que, do lado dos governo dos Estados Unidos (lembremo-nos que "nuestros hermanos del Norte" estavam sob o governo de Richard Nixon e a tutela imperial de Henry Kissinger), a hostilidade ao governo de Allende começou a ficar evidente desde a campanha eleitoral, quando as estatizações eram apenas uma idéia programática. Visto com a perspetiva de hoje, o processo de estatizações aparece, na realidade, como a consequencia inevitável do programa econômico que era a base da plataforma de governo da Unidade Popular. As estatizações foram se sucedendo, levando a uma forte radicalização do processo político. A instituição em que eu trabalhava - a Corporación de Fomento de la Producción - passou a ser o principal instrumento para as estatizações, através da utilização de antigas leis (verdadeiros "resquícios legais") que permitiam a requisição de empresas em casos de desabastecimento, etc. As "requisições" foram se sucedendo e também à Corfo cabia a gestão destas empresas estatizadas, através de "interventores" designados pelos partidos políticos da UP ou dentro dos quadros técnicos da Corfo. Evidentemente, a reação dos Estados Unidos foi violenta, já a partir da própria campanha eleitoral que resultou na eleição do Allende. Hoje sabe-se plenamente que os Estados Unidos financiaram as campanhas de candidatos que disputavam com Allende. Uma vez eleito Allende - mas ainda não empossado - houve uma tentativa de golpe de estado em que a participação indireta americana ficou evidenciada : o grupo de conspiradores - militares anti-Allende em aliança com militantes de ultra -direita - tentou sequestrar o Comandante do Exército, general René Schneider, que havia assumido uma posição legalista. O sequestro se frustrou, mas levou à morte do Gen Schneider, ferido á bala na tentativa. As armas utilizadas pelos conspiradortes foram cedidas por agentes ligados à CIA americana, segundo investigações do Senado americano comprovaram anos depois.
Empossado Allende, a hostilidade americana foi permanente. E o golpe militar de 73 teve forte respaldo militar americano.
Mais de tres décadas após a experiencia chilena com o governo da Unidade Popular, é válida a pergunta de qual teria sido a contribuição real que poderia ser apontada, hoje, deixada por Allende no âmbito das instituições e da economia chilena.
Esta é, na realidade, uma pergunta difícil de ser respondida. Para muitos de nós que vivemos o processo chileno pré-73, Allende tornou-se o símbolo da aspiração de uma via pacífica para a tomada do poder e a construção de uma sociedade com cores socialistas. A possibilidade desta via pacífica, eleitoral, era um sonho que se frustrou inteiramente quando do golpe pinochetista. A morte heróica de Allende, resistindo no Palácio de la Moneda, tornou-se um símbolo para milhares, milhões talvez. Mas também abriu um espaço de reflexão para a esquerda. Muitos não souberam tirar as lições deste período e caminharam para o desastre político. Outras forças, a duras penas, purgaram os seus pecados e conseguiram avançar em projetos mais comprometidos com os ideais democráticos. Para estes, a democracia deixou de ser um valor "burguês", para ser um valor universal. Neste sentido, a herança de Allende foi extremamente positiva (malgré lui, se pode até dizer). A ampla coligação de partidos históricos - la Concertacción - que levou à redemocratização no Chile é certamente herdeira deste processo histórico. Lula e o PT, no Brasil, também o são, se bem que não tenho certeza de que tenham consciência disto. Mas acho que pelos menos Marco Aurélio Garcia- que viveu no Chile nos tempos de Allende- participa esta compreensão mais aberta.
O Chile é governado hoje pela socialista Michelle Bachelet . A presidente Bachelet é uma ex-presa política que teve o seu pai, o general da Força Aérea Alberto Bachelet - um oficial progressista, próximo do Partido Comunista, com quem trabalhei e que comigo esteve preso no Ministério da Defesa - morto nas masmorras militares nas semanas que se sucederam ao golpe. Muitos se surpreendem com a moderação da esquerda chilena, agora de volta ao poder em outras condições históricas. A dura repressão do período Pinochet levou a que se forjara a coalização esquerda/democracia cristã que fora impossível nos tempos de Allende. De certa forma - e à semelhança do caso brasileiro, em que o governo Lula deu continuidade à política econômica de Fernando Henrique - os governos dos partidos da Concertacción ( a grande coalização das forças democráticas que possibilitou que se construíra, pouco a pouco e com extremo cuidado, as condições para o afastamento de Pinochet do poder) preservaram as carcterísticas básicas do modelo econômico chileno. Muitos se espantam com a vitalidade economica chilena das últimas décadas. Não falta quem atribua esta vitalidade às políticas econômicas adotadas sob Pinochet. O que há de fundamento nesta perspetiva ? O povo chileno vive hoje melhor e com mais prosperidade, em comparação à época da implantação do governo de Allende?
Sem dúvida alguma. Afinal, passaram-se 35 anos. A economia chilena apresenta hoje uma certa pujança, o Chile tornou-se uma espécie de "jaguar latinoamericano". Tendo vivido no Chile entre 1969 e 1973, tive a chance histórica de ter presenciado e tomado participação ativa no processo que levou à ascenção e queda do regime da Unidade Popular. Participei da resistencia ao golpe militar, fui preso e conduzido aos subterraneos do Ministério da Defesa, em frente ao Palácio bombardeado do governo.Fui a seguir conduzido ao campo de concentração do Estádio Nacional, onde tomei conhecimento da morte trágica da minha esposa, fuzilada pelos militares. Sofri os horrores da viuvez, dos fuzilamentos simulados e das condições precárias da prisão no Estádio Nacional por várias semanas (em outra ocasião, poderei contar como, dentro desta tragédia coletiva, vivi a minha própria tragédia pessoal, e pude superar a ambas com um final "feliz"). Ter acompanhado de dentro todo este processo, ter visto a ascensão, depois o apogeu e finalmente os horrores da derrocada, deu-me, talvez, uma visão ímpar.
Posteriormente, voltei a viver no Chile entre 1998 e 2002, desta vez não mais como exilado, mas vinculado a um organismo das Nações Unidas. Já era um novo Chile, então já no segundo e terceiro governos da "Concertacción" , o segundo com o democrata-cristão Eduardo Frei (o filho do presidente Frei que havia recebido os exilados dos anos 60) e o terceiro com o socialista "renovado" Ricardo Lagos.
Não há comparação possível entre os dois Chiles. O Chile anterior havia sido para mim o Chile do sonho, da utopia, da esperança. O Chile que se reclamava no seu hino nacional que seria " ó la tumba de los libres, ó el asilo contra la opresión". Para mim e para geração de brasileiros que lá viveu, este Chile foi o asilo contra a opressão.
O Chile de hoje é o país moderno, que se pensa às portas do primeiro mundo, mas que descobre às vezes que tem uma concentração da renda ainda mais regressiva que a do Brasil. Um Chile com um nível de bem-estar maior, um Chile que avançou em muitos aspectos sociais, econômicos e políticos. Mas falta alma ao país. Êle se aburguesou. E também se apequenou nos ideais e na participação política.
Então, quando olho para o Chile dos tempos de Allende, vejo que talvez nada tenha sobrado do naufrágio das ilusões perdidas. Como no poema de Drummond que fala de Itabira, Allende é hoje apenas um retrato na parede. Mas como dói, como bate uma saudade e uma nostalgia imensas desta época em que a construção da Utopia parecia estar ao alcance das mãos...
Mauricio Dias David, economista do BNDES, viveu como exilado no Chile entre 1969 e 1973
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