domingo, 10 de agosto de 2008

O Outono do Torturador - por Celso Lungaretti

15 de novembro de 2006

Brilhante Ustra comandou, entre setembro/1970 e janeiro/1974, o DOI-Codi de São Paulo, o principal órgão de repressão aos grupos de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura militar. Já foram apresentadas 502 denúncias de torturas referentes a esse período. Pelo menos 40 revolucionários foram assassinados no DOI-Codi, inclusive o jornalista Vladimir Herzog.

Celso Lungaretti (*)

O coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra está sendo julgado na 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo por seqüestro e tortura praticados em 1972/73 contra o casal César Augusto/Maria Amélia Teles e três parentes. As testemunhas de acusação foram ouvidas no dia 9 de novembro, tendo a repercussão da audiência na mídia provocado uma ampla mobilização de militares da reserva, em apoio ao réu.

Brilhante Ustra comandou, entre setembro/1970 e janeiro/1974, o DOI-Codi de São Paulo, o principal órgão de repressão aos grupos de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura militar. Já foram apresentadas 502 denúncias de torturas referentes a esse período. Pelo menos 40 revolucionários foram assassinados no DOI-Codi, inclusive o jornalista Vladimir Herzog.

O processo contra Brilhante Ustra é de natureza declaratória: não implicará prisão ou indenização, objetivando apenas o reconhecimento oficial de que ele foi um torturador. O que não é pouco, em termos morais.

Os ex-colegas de farda e a defesa de Brilhante Ustra alegam que a Lei da Anistia de 1979 tornou inimputáveis tanto os repressores quanto os revolucionários. Já a família Teles e as entidades de defesa dos direitos humanos argumentam que essa restrição se refere apenas aos crimes, não às ações de natureza civil; foi este, também, o entendimento do juiz da 23ª Vara.

Isto é o que qualquer um pode ler no noticiário. Vamos ao que a imprensa não diz.


LEI DA ANISTIA IGUALOU
VÍTIMAS E CARRASCOS

A anistia recíproca de 1979 foi um sapo engolido pela sociedade civil, que abriu mão do ideal de justiça em troca da libertação da maioria dos presos políticos e da volta dos exilados. Os militares, conscientes de que haviam incidido nas mesmas práticas punidas exemplarmente no Julgamento de Nuremberg, fizeram uma barganha muito vantajosa: já que a redemocratização um dia acabaria ocorrendo, trataram de assegurar previamente a não-condenação de seus criminosos.

No fundo, tratou-se apenas da imposição da vontade do mais forte sobre o mais fraco. Tendo usurpado o poder em 1964, os militares governavam o País ilegalmente e sob terrorismo de estado há 15 anos. Usaram presos e exilados como moedas de troca para chantagear os oposicionistas, obrigando-os a aceitar uma solução que atou as mãos do Judiciário e o deixou impedido de cumprir seu papel.

Então, não é um acordo para ser respeitado, mas sim denunciado. E a iniciativa da família Teles poderá ser o primeiro passo nesta direção.

A ditadura militar foi responsável pela morte de mais de 400 revolucionários ou cidadãos suspeitos de sê-lo; pelo desaparecimento de 150 outros militantes, quase todos assassinados e sepultados em cemitérios clandestinos, como o que foi descoberto em Perus (SP); e pela tortura de milhares de brasileiros.

Brilhante Ustra e outros remanescentes dessa direita troglodita alegam, em contrapartida, que as organizações armadas de esquerda teriam vitimado 120 pessoas e ferido outras 330.

Não se trata, entretanto, de uma questão de números, embora o balanço continue sendo desfavorável à ditadura, por mais que seus apologistas distorçam fatos e manipulem estatísticas, em sites como o Terrorismo Nunca Mais e o Usina de Letras.

O Brasil e muitos outros países do 3º Mundo viveram, nas décadas de 1960 e 1970, a mesma situação dos países ocupados pelo nazi-fascismo durante a 2ª Guerra Mundial. O poder emanava das baionetas. Governos legítimos eram derrubados por conspiradores financiados e apoiados pelos Estados Unidos, como ficou evidenciado de forma cristalina no Brasil.

Em nosso país, a interferência começou com as pressões para que Getúlio Vargas deixasse o poder em 1945; continuaram com o incentivo aos golpistas da UDN, que só não conseguiram seu intento em 1954 porque a carta-testamento de Vargas provocou forte reação popular; e culminaram no apoio ao grupo militar castellista envolvido com a quartelada malograda de 1961 e responsável pela bem-sucedida de 1964.


CONFRONTO ENTRE
CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE


Já não há dúvida nenhuma, para os historiadores dignos desse nome, de que não ocorreu aqui um “contragolpe preventivo”, como alegaram na época os militares, mas simplesmente uma conspiração urdida durante anos para a conquista do estado – que, aliás, depois serviria de modelo para a deposição de Salvador Allende no Chile.

No poder, os militares fecharam o Congresso Nacional sempre que lhes aprouve e suspenderam a vigência da Constituição, sobrepondo-lhes os famigerados atos institucionais que baixavam a bel-prazer; extinguiram partidos, sindicatos e entidades; cassaram os mandatos de representantes do povo; organizaram governos de fachada, “eleitos” por um Legislativo expurgado e intimidado; censuraram as artes e as comunicações; prenderam, baniram, torturaram, assassinaram, ocultaram cadáveres.

Na prática, comportaram-se como tropa de ocupação, tanto quanto os nazistas nas nações por eles conquistadas. E os cidadãos que ousaram enfrentá-los, apesar da terrível desigualdade de forças, equivalem em tudo e por tudo aos movimentos europeus de resistência da década de 1940.

A celebrada Resistência Francesa também atingiu vítimas inocentes em algumas ocasiões, mas a nenhum energúmeno ocorre hoje compará-la aos nazistas ou ao governo fantoche de Vichy.

Da mesma forma, devem-se reprovar alguns excessos cometidos pelos revolucionários brasileiros que combatiam de forma quase artesanal a poderosa engrenagem repressiva montada pelos militares e seus instrutores norte-americanos, mas é inaceitável e desonesto argüir uma pretensa equivalência dos crimes. Só um lado agrediu, continuada e sistematicamente, os valores mais sagrados da civilização.

Pois é disso que se tratou: um confronto entre civilização e barbárie.


A PENA DE BRILHANTE USTRA:
EXECRAÇÃO PÚBLICA


Países como a Argentina e o Chile avançaram bem mais do que o Brasil na apuração dos crimes cometidos pelas ditaduras militares. Quanto à punição, ao contrário dessas nações que não relativizaram o sentimento de justiça e têm o mínimo respeito por seus mártires, continuamos na estaca zero.

Daí a importância de que Brilhante Ustra seja, como merece, exposto exemplarmente à execração pública.

Sua defesa alega que ele nada sabia das práticas cotidianas do órgão que comandava. Para tornar essa versão plausível, deveria ter anexado um atestado de surdez. Quem passou pelos porões da ditadura – ou, mesmo, morava nas redondezas – sabe quão inconfundível era a “trilha sonora” de uma sessão de tortura: os gritos raivosos dos torturadores e os urros inumanos dos torturados ao receberem choques elétricos; ruídos de socos, pontapés e objetos caindo.

Se hoje os comandantes fogem às suas responsabilidades, preferindo utilizar os comandados como biombo, bem diferente foi a atitude do general-presidente Geisel: ao tomar conhecimento do assassinato de Vladimir Herzog no DOI-Codi de Brilhante Ustra, não preferiu o caminho fácil da omissão, mas ordenou ao aparelho repressivo que evitasse uma repetição daquele fato; ao saber da morte de Fiel Filho nas mesmíssimas circunstâncias, não vacilou, extinguindo de imediato aquele órgão maldito e dispersando seus integrantes.

Um ditador podia ter, ao menos, dignidade pessoal. Um torturador, jamais. Nem antes, nem agora.

Quanto ao argumento de ordem humanitária – se não se puniu Brilhante Ustra (ou seu congênere chileno, Pinochet) no momento certo, não seria melhor agora deixar o ancião morrer em paz? – é respeitável. A prescrição dos delitos evita que cidadãos sejam punidos quando já não têm periculosidade, possibilidade de reincidir e, às vezes, nem mesmo discernimento para entenderem o porquê da punição.

A prática do estado de Israel de caçar criminosos de guerra nazistas no mundo inteiro, até seqüestrando-os para submetê-los a julgamento, chocou a consciência civilizada. Foi excessiva, além de haver incidido em novos crimes a pretexto de punir os crimes passados.

Não equilibraríamos os pratos da Justiça seguindo esse exemplo – nem, no outro extremo, simplesmente passando uma borracha em todas as atrocidades que foram cometidas durante a ditadura.

Para encontrarmos um ponto de equilíbrio, o caso de Brilhante Ustra é dos mais propícios. Primeiramente, porque não se pede sua prisão, mas, apenas, que lhe seja oficialmente imputada a responsabilidade moral por tudo aquilo que realmente fez.

E, tendo escrito dois livros de justificação dos crimes contra a humanidade que ele e outros torturadores cometeram, bem como de calúnias contra suas vítimas, mantém a periculosidade, já que tenta envenenar as novas gerações; reincide em seus crimes, na medida que defende as práticas da força contra o Direito; e prova que não perdeu o entendimento das coisas, embora a velhice não lhe tenha trazido lucidez nem arrependimento.

Não se trata de satisfazer desejos de vingança, mesmo que justificáveis. Mas, de sinalizar para os pósteros que certos limites jamais devem ser transpostos. Pois aqueles que os transpuserem não escaparão da punição, seja com as penas de morte e detenção decididas pelo tribunal de Nuremberg, seja com a marca da infâmia que, se a Justiça funcionar, deverá acompanhar Brilhante Ustra pelo resto dos seus dias.

* Celso Lungaretti, jornalista e escritor, é ex-preso político e autor do livro “Náufrago da Utopia”.

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