A narrativa contra a notícia
A degeneração do jornalismo em "infoentretenimento" tem sido anunciada pelos mandarins da profissão desde que a revolução das emissoras de 24 horas de notícias na TV a cabo derrubou as redes de TV do pedestal. Agora a internet está superando as TVs a cabo como lugar onde os consumidores vão em busca de sua mistura de "infoentretenimento" -- ou, alternativamente, onde eles vão saber o que a mídia corporativa não nos diz. O que é novo é que essa antiga reclamação tem um novo ângulo. Com o conceito de reportar as "notícias" já em risco, a pregação histérica da guerra que se seguiu ao 11 de setembro completou um processo de degradação iniciado muito antes. No mundo pós 11 de setembro, as notícias, como tal, já não existem: o que temos agora é uma "narrativa".
Preste atenção nas cabeças falantes da TV e você vai ouvir uma frase ecoando nos canyons da TV a cabo, ricocheteando nas paredes repetida por repórteres, blogueiros e a turma do cafezinho: é a narrativa, estúpido.
O significado -- e o perigo -- dessa narrativa foi demonstrado de forma magistral antes da invasão do Iraque. Os fatos foram jogados de lado, ou foram escolhidos e arranjados de forma a fazer mímica da verdade enquanto se dizia uma mentira deslavada. Os maiores contos foram alinhavados em uma história, na qual a figura central era um ditador louco por poder em busca das "armas de destruição em massa", que ameaçava não apenas os seus vizinhos, mas todo o mundo. George W. Bush até sugeriu que Saddam estava pronto para desfechar um ataque nos Estados Unidos. Naves iraquianas, especialmente feitas para lançar armas químicas e biológicas, teriam sido montadas e estavam prontas para jogar armas de destruição em massa em cidades americanas. Uma idéia estúpida que aparentemente convenceu alguns congressistas. Depois que a verdade sobre essas naves apareceu -- elas nunca existiram -- ao menos um parlamentar envergonhado descobriu que as fotos das "armas de destruição em massa" eram fajutas, tinham sido tiradas em algum lugar do sudoeste americano.
Não foi a única falsificação que figura nas "provas" chave apresentadas pelo Partido da Guerra contra o regime do Iraque. Não se esqueçam das famosas falsificações sobre o urânio do Níger, uma série de documentos tão claramente falsos que cientistas da Agência Internacional de Energia Atômica só precisaram de alguns momentos no Google para descobrir a fraude. O Congresso Nacional Iraquiano, de Ahmed Chalabi, a maior fonte de "inteligência" que nos mentiu até a guerra, supostamente mantinha uma fábrica dessas produções que trabalhava com regularidade. (Tudo pago, aliás, por você, contribuinte americano: pagamos a Chalabi milhões para nos enganar, graças ao governo Clinton que promoveu o Ato de Libertação do Iraque, que foi apoiado pela liderança dos dois partidos.)
O ponto é que ninguém parece se preocupar com as falsificações, embora a promulgação e distribuição delas a integrantes do Congresso e do governo seja crime federal. Presidentes perderam o cargo por menos. No entanto, eu não seguraria a respiração esperando pelos indiciamentos, já que não vão acontecer e só parte do motivo é político. A razão verdadeira é que mentir já não é considerado um problema. É esperado e quase universalmente aceito como normal, desde que seja coisa da gente certa, da forma certa.Mentir com estilo é certamente uma forma de descrever os mitos das armas de destruição do Iraque como "fato", distribuído por organizações informativas mundialmente até que as provas da não existência delas surgissem. A forma de John Edwards mentir sobre o relacionamento com uma mulher que não é a esposa dele é um exemplo clássico de como não fazê-lo: mentir sem jeito. De outra parte, a forma que Franklin Delano Roosevelt usou para mentir e nos levar à guerra, isso é classe! FDR foi aprovado e até ganhou um tapinha nas costas, já que o conto contado por uma figura paternal que sabia o que era melhor para nós vence qualquer consideração de que a verdade vale acima de tudo.
Enquanto passavam as fotos e os documentos forjados como argumentos válidos para atacar o Iraque, os integrantes do Partido da Guerra sem dúvida pensavam em FDR como exemplo e inspiração. Até porque Saddam, de acordo com eles, era o equivalente moderno do Hitler, qualquer coisa valia para tirá-lo do poder, algo que só uma guerra "de libertação" seria capaz de fazer.A mídia corporativa se transformou num carrossel para um pacote de mentiras, com a primeira página do New York Times entregue a Judith Miller e seus colegas no governo para usar como um quadro de recados. Com certeza os neocons tornaram o trabalho dos jornalistas muito fácil: ao escrever sobre o Iraque, os repórteres tinham muitas histórias interessantes (embora improváveis) para contar, fantasias construídas cuidadosamente a partir de talentosos (embora algumas vezes descuidados) propagandistas da guerra. Lembremos, por exemplo, do encontro de Mohammed Atta em Praga, em um aeroporto, com uma autoridade dos serviços de inteligência de Saddam. Nunca aconteceu, no entanto era uma "notícia" chamativa, com elementos de drama, o que talvez explique como persistiu apesar de tantos desmentidos. Se tornou uma espécie de lenda urbana, assim como aqueles crocodilos gigantes encontrados no sistema de esgotos de Nova York.A narrativa iraquiana do Ditador Louco Armado com a Bomba Atômica teve uso enquanto durou. Quando finalmente tinha sido desmentida nós já estávamos atolados no Iraque, sem qualquer chance de sair em breve. Revelar a identidade de uma agente da CIA foi o menor dos crimes cometidos pela turma pró-guerra do governo, mas eles nunca irão para a cadeia pelo pior de suas ações, já que, afinal, tudo era parte de uma narrativa em que todos acreditaram na época. Bem, todos os serviços de inteligência acreditavam que Saddam estava escondendo as armas - essa é a posição do pessoal do Partido da Guerra atualmente, uma tautologia curiosa que nos faz imaginar como é que poderiam acreditar em outra coisa e que ignora o fato de que toda as evidências em contrário foram sistematicamente suprimidas.O que nos taz para o primado da narrativa pós-11 de setembro. A história que o governo nos contava foi preparada para os horrores da imaginação pós 11 de setembro, um mundo habitado por monstros com armas terríveis nos perseguindo. Visões de morte em massa, coladas na imaginação coletiva, foram projetadas em toda superfície e o Congresso foi cercado pelo medo -- para o Partido da Guerra, o fortuito episódio do antrax no correio ajudou -- e levado a aprovar o Patriot Act. A mesma histeria de massa forçou o Congresso a se calar quando os neocons nos levaram à guerra e manteve quase toda a oposição prostrada até que era tarde para reverter o trágico curso dos eventos.Que a mídia foi levada a projetar a imagem da Al Qaeda numa figura que não tinha nada a ver com o 11 de setembro ficou claramente demonstrado pelos embaraçosos números das pesquisas mostrando que a maioria ainda acredita que Saddam estava por trás dos atentados, apesar da completa falta de provas disso. A mídia corporativa, ao noticiar sem crítica os pronunciamentos de autoridades americanas, transmitiu essa fantasia e plantou-a de forma tão firma na consciência americana que nenhuma tentativa de desmentir isso vai erradicar a mentira completamente.
A história que o governo estava contando para os repórteres era boa pelos padrões de Hollywood, mas não para qualquer escola de Jornalismo sobre a qual ouvi falar. Seria de concluir que, depois de serem usados por suas fontes, os repórteres teriam aprendido alguma coisa da experiência do Iraque. Mas não, eles estão fazendo o mesmo desta vez ao noticiar a mini-guerra da Rússia com a Geórgia no Cáucaso. Exceto que, nesse caso, a combinação com o governo demonstra não apenas preguiça, mas cegueira de propósito.Já notei no Mundo Bizarro da reportagem que a mídia ocidental nega o evento-chave que deu início a essa guerra: a invasão da Ossétia do Sul, que de fato era independente desde os anos 90, pela Geórgia. O ataque em Tskhinvali, a capital da Ossétia do Sul, aos poucos está ficando claro, mas o Partido da Guerra diz que houve poucas vítimas. De acordo com a Human Rights Watch, menos de 50 pessoas foram mortas durante o assalto, embora Peter Finn, do Washington Post, comparou a devastação com a da cidade de Stalingrado durante as piores batalhas da Segunda Guerra Mundial.Sim, o governo da Geórgia bombardeou aqueles que alegava ser seus cidadãos e, sim, muitos foram mortos, embora não se saiba quantos. Mas, quantos forem, eles não serão mostrados pela mídia ocidental -- com raras exceções -- já que os fatos atrapalham a narrativa, a linha de raciocínio para a próxima guerra, que vai ser conduzida provavelmente pelo próximo presidente americano.Quando uma boa narrativa é utilizada demais ela se torna contraproducente e a história do Partido da Guerra no cenário do Oriente Médio está ficando desbotada. O que é preciso, portanto, é uma nova narrativa, uma envolvendo um ditador autoritário que representa uma "ameaça" aos nossos interesses nacionais, e preferencialmente um que tenha armas de destruição em massa. Vladimir Putin é a escolha perfeita para esse papel: o olhar duro, o culto à personalidade que parece ter surgido na Rússia em torno dele (ao contrário de nosso presidente, ele é popular com seu próprio povo) e sua origem como espião da KGB -- é perfeito para o papel de Novo Hitler, com uma pitada de Stalin jogada na mistura.Vilões não bastam para produzir uma boa narrativa. Precisamos de heróis, os bonzinhos, nesse caso os moradores da Geórgia, cujo presidente, Mikhel Saakashvili, diz ser amigo da "liberdade". Naturalmente que isso já foi usado muitas vezes para mascarar a tirania e Saakashvili pode querer perguntar aos proprietários daquela emissora de tv que ele fechou na véspera das eleições o que a palavra "liberdade" significa para eles. Ele também pode perguntar às 500 pessoas que ficaram feridas em manifestações, espancadas na rua pela polícia de Saakashvili por protestar quando ele decidiu reprimir a oposição, cujos líderes foram presos antes que pudessem votar.Ah, sem problemas: o Partido da Guerra pode transformar urubu em meu louro ou reverter o processo se for necessário. É tudo sobre a habilidade de contar uma boa história e fazer com que ela cole por tanto tempo quanto for possível.
E assim temos um vilão e um herói. O que precisamos agora são algumas analogias históricas e mais do que uma já apareceu: a anexação dos Sudetos, o pacto de Munique, a véspera da Segunda Guerra -- e Hitler, sempre Hitler, nos ameaçando com sua sombra longa e escura. Fatos, vidas reais destruídas, mesmo milhares de mortes -- nada disso importa. É tudo espalhado como detrito no vento. A força da narrativa nos leva adiante, no impulso: a OTAN condena a "invasão russa" e os moradores da Geórgia recebem um tapinha nas costas, com a promessa de muito dinheiro do contribuinte americano e um aviso de que devem esperar sua vez.
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