Novamente o Brasil terá de prestar contas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Desta vez, pela omissão da Justiça brasileira diante de uma violenta repressão da Polícia Militar contra uma marcha do Movimento dos Sem Terra (MST) no Paraná. O confronto, ocorrido em maio de 2000, resultou na morte do agricultor Antonio Tavares, de 37 anos, vítima do projétil disparado por um PM. O atirador obteve a indulgência do tribunal militar e conseguiu um habeas corpus para trancar a ação penal na Justiça comum, com base na decisão anterior dos colegas de farda.
Ainda há um longo processo pela frente antes de o caso ser remetido à Corte Inter-americana, que pode obrigar o País reabrir a investigação. O primeiro passo foi dado: a aceitação da denúncia pela comissão ligada à Organização dos Estados Americanos, que não se convenceu da idoneidade das investigações criminais realizadas no Brasil e citadas pelos advogados de defesa do Ministério das Relações Exteriores e da Secretaria Especial de Direitos Humanos para desqualificar as acusações. Além disso, o áspero relatório da comissão, assinado em outubro de 2009 e divulgado somente agora, recrimina o País por confiar a apreciação do processo a uma corte militar, a despeito das orientações da OEA.
Desde 1997, a entidade recomenda ao Estado brasileiro “a atribuição de competência à Justiça comum para julgar todos os crimes cometidos por membros das polícias militares estaduais”. O relatório ainda ressalta que os tribunais militares não gozam “da independência e autonomia necessárias para investigar de maneira imparcial as supostas violações de direitos humanos” e reitera o apelo de não se permitir o julgamento de violações aos direitos humanos em cortes militares.
Após relembrar as circunstâncias do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, quando 19 sem-terra foram mortos por policiais militares no Pará, os magistrados que assinam o documento avaliam que um inquérito conduzido pela Justiça Militar “elimina a possibilidade de uma investigação objetiva e independente, executada por autoridades judiciais não ligadas à hierarquia de comando das forças de segurança”. E mesmo que o caso passe logo à Justiça ordinária, observam os juízes, o processo fica comprometido, “dado que não foram colhidas as provas necessárias de maneira oportuna e efetiva”.
Na avaliação da ONG Justiça Global, uma das autoras da denúncia oferecida à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a investigação que se seguiu à morte do lavrador comprova esses vícios. O confronto aconteceu depois que a Polícia Militar montou um cerco na rodovia BR-277, que dá acesso a Curitiba, para impedir uma manifestação dos sem-terra na capital paranaense. Para dispersar os manifestantes, a polícia iniciou uma batalha campal, com bombas, gás lacrimogêneo, disparos com balas de borracha e até com armas de fogo. Além do agricultor assassinado, 185 pessoas ficaram feridas.
“Quando percebemos, já estávamos cercados pela polícia. A tropa de choque de um lado, atiradores de elite do outro, um helicóptero sobrevoando e lançando bombas do alto”, comenta José Damasceno, 49 anos, membro da coordenação do MST no Paraná. “No fim, todo mundo estava desnorteado. Os policiais obrigaram todos a deitar de bruços no chão. Na confusão, perdi meu filho de vista. Só fui reencontrá-lo três dias depois.”
Tão logo o confronto acabou o então secretário da Segurança Pública do Paraná, José Tavares, apressou-se em defender a operação, reiterando que o confronto fora inevitável e não ocorreu uso de armas de fogo. As imagens captadas por emissoras de tevê e o resultado de um laudo do Instituto Médico Legal desmentem Tavares. As gravações mostram a brutalidade da ação policial contra trabalhadores desarmados. E o laudo atesta que a bala que matou o lavrador saiu da arma do soldado Joel de Lima Sant’Ana. O projétil teria rebatido no asfalto e perfurado o abdome da vítima.
Como o homicídio doloso é o único crime previsto em lei capaz de levar um policial militar, no exercício de suas funções, à Justiça comum, dois inquéritos foram abertos: um civil e um militar. O civil levou a Promotoria a denunciar o soldado pelo assassinato, destacando que o policial assumiu o risco de matar ao efetuar disparos contra o chão diante da multidão. Já o promotor da Justiça Militar, Misael Duarte Pimenta Neto, pediu o arquivamento do caso, sob a justificativa de que o soldado agiu no cumprimento da lei e sem intenção de matar. No mesmo dia em que recebeu o processo de 960 páginas, o juiz militar José Carlos Dalaqua absolveu o PM.
Foi com base nessa decisão que o soldado Sant’Ana conseguiu um habeas corpus no Tribunal de Justiça do Paraná para trancar a ação penal movida pelo Ministério Público na Justiça comum. “Na prática, os desembargadores assumiram como válida a decisão da Justiça Militar, na qual o processo já havia sido arquivado”, afirma a advogada Renata Lira, da Justiça Global. “Mas basta ler o processo redigido pelo promotor militar para ver como era enviesado. Ele chama o MST de ‘milícia à margem da lei, da moral e da razão’.”
Mais do que garantir uma investigação criteriosa e punir os responsáveis pela morte do lavrador, as organizações que levaram o caso à OEA esperam que a Corte Interamericana obrigue o Brasil a acabar de vez com os julgamentos de crimes contra civis nas cortes militares. “Se o País for condenado, o que era uma recomendação passa a ser uma obrigação. E se não cumpri-la, pode sofrer sanções dos Estados membros da OEA”, diz Lira.
Até 1996, todos os crimes cometidos por policiais militares no exercício de suas funções eram investigados e julgados por cortes militares. Com a aprovação da Lei nº 9.299, de 1996, proposta pelo advogado Hélio Bicudo, a regra mudou: os homicídios passaram para a esfera da Justiça comum, mesmo que tenham acontecido durante operações policiais. Nas Forças Armadas, a regra é diferente: todos os crimes praticados em operações militares são julgados por uma corte fardada.
“É compreensível que a regra seja diferente para os policiais, porque eles não ficam dentro dos quartéis. Seu trabalho é na rua e as consequências dos seus crimes vão muito além da caserna”, comenta a socióloga Cristina Neme, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). “Com essa alteração na lei, ao menos os casos de homicídio deveriam seguir um trâmite independente na Justiça comum. Mas não é raro encontrar exemplos de policiais que conseguem interferir na investigação, alterando a cena do crime ou removendo o corpo das vítimas para despistar a perícia, com a justificativa de prestar socorro.”
Para Hélio Bicudo, que já presidiu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, todos os crimes praticados por militares deveriam ser julgados pela Justiça comum. “A manutenção de uma corte especial, com esse perfil corporativista, é incompatível com a democracia”, afirma. “Quando propus a alteração na lei, era para abarcar todos os crimes cometido pelos militares. Mas não foi possível.”
Para o advogado, o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos, sancionado por decreto presidencial no fim de 2009, poderia avançar mais nessa questão. “Os planos anteriores sugeriam restrições à competência da Justiça Militar. Mas no atual eu não encontrei nenhuma diretriz nesse sentido”, lamenta Bicudo. “O mais preocupante é que o governo federal já atribuiu poder de polícia ao Exército, e agora está encaminhando um projeto para o Congresso para estender esse poder à Marinha e à Aeronáutica. Mas e os crimes que, por ventura, os militares vierem a cometer no exercício das novas atividades policiais?”
De acordo com os ministros da Justiça, Tarso Genro, e da Defesa, Nelson Jobim, as Forças Armadas só deverão atuar em áreas fronteiriças, onde as autoridades policiais não têm pleno controle do território. Fora desse cenário, os militares só seriam convocados em casos excepcionais e a pedido do presidente da República, como aconteceu nas ocupações de favelas cariocas para pacificar guerras do tráfico. Os eventuais crimes praticados pelos militares durante essas operações continuam sob a esfera da Justiça Militar, exceto se eles praticarem um crime comum e fora das suas obrigações de trabalho.
“Se o sujeito está numa operação subsidiária, por exemplo, de patrulhamento da Força Aérea e autoriza-se a legislação de abate, estaria sujeito à Justiça Militar porque se trata de ação militar”, afirmou Jobim, durante uma palestra no fim de 2009. “Agora, se um soldado numa operação militar pratica um crime comum, ele vai responder à Justiça comum.”
A explicação não satisfaz boa parte das entidades de defesa dos direitos humanos. “Se um policial militar ou um soldado do Exército praticam um crime no cumprimento de uma operação qualquer, como a reintegração de posse de uma fazenda, ele deveria enfrentar a Justiça comum, porque a lei deve ser a mesma para todos”, afirma Darci Frigo, da ONG Terras de Direitos. “No fundo, os abusos e a impunidade que vemos no campo não são muito diferentes do que ocorre nos centros urbanos, onde sempre vemos denúncias de execuções sumárias envolvendo PMs. É preciso acabar com esse manto corporativista que protege criminosos. E espero que o julgamento da morte de Antonio Tavares possa contribuir para esse debate no Brasil.”
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