Quando Lula saiu da prisão em 1980, conversamos debaixo do olhar de um Cristo benedicente. Estávamos à mesa da cozinha da casa do ainda presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema e Jesus no frontispício de um calendário.
E veio à baila o cacique. Lula contou-me a história de estranhas visitas recebidas no Dops, onde passara sua temporada carcerária. Vinham uns cavalheiros austeros, engravatados. Tratavam-no com respeito, simpatia até, e faziam perguntas, de cenho sereno, sobre sua vida pessoal e inspirações políticas. Quem seria o cacique, de quem se diziam enviados? “Nem imagino”, disse Lula.
Não faz muito tempo, o atual senador Romeu Tuma, brando carcereiro de Lula no Dops, revelou-me que o cacique era Golbery do Couto e Silva. José de Souza Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, em artigo publicado pelo O Estado de S. Paulo de julho do ano passado, recordou um discurso de Golbery na Escola Superior de Guerra, pronunciado em 1980. Lembrança oportuna. O general ali citou Lula como figura central de uma elite sindical, líder autêntico “sem revanchismo ideológico”. De quem, entretanto, se diz desapontado, porque o viu atraído “para atividades mais políticas do que sindicais”.
Vale observar, porém, que Lula, de início, serviu aos propósitos da reforma partidária excogitada pelo grande conselheiro de Ernesto Geisel e, por dois anos, de João Baptista Figueiredo. Visava a estilhaçar a oposição reunida à sombra do MDB de Ulysses Guimarães. O surgimento do Partido dos Trabalhadores representou contribuição notável à realização do plano.
Conheci bastante bem o general Golbery, a quem fui apresentado em 1972, quando era presidente da Dow Chemical no Brasil. Figura bem-humorada, cordial, arguta. Dizia-se boquirroto e, certamente, foi excelente fonte, o que me custou acusações pesadíssimas de vários colegas dispostos a enxergar em mim um quinta-coluna.
Tratava-se de perfeito exemplar de uma geração curtida na Guerra Fria, e está claro que as ideias dele não batiam com as minhas, embora sua companhia fosse agradável, além de rendosa do ponto de vista profissional. Sabia tudo a meu respeito, inclusive muito além do que eu pudesse imaginar. Certa vez comentou na presença de um jornalista celebrado que minha fé era gramsciana. O colega prontamente garantiu: Mino não é comunista. Era o mesmo disposto a vaticinar que, algum dia, eu fecharia com a direita. Golbery sorriu e deixou cair o assunto. Eu aderi.
Os tempos eram outros. A singular personagem Golbery continua, contudo, viva na minha memória. Ideólogo do golpe de 1964 e da abertura que tirou os militares do poder. Demitiu-se do governo Figueiredo porque, ao exigir a exoneração do general Gentil Marcondes Filho, comandante do I Exército e primeiro responsável pelas bombas do Riocentro, em 1981, não foi atendido por obra das pressões contrárias exercidas pelo general Octávio de Medeiros, chefe do SNI e candidato fardado à sucessão de Figueiredo.
Inventor do próprio SNI, Golbery acabaria por admitir ter criado “um monstro”. Contou-me dom Paulo Evaristo Arns, o extraordinário cardeal paulistano, que houve ocasião em que, ao submeter ao então chefe da Casa Civil uma lista de presos, torturados e desaparecidos, o general chorou. Desprezava inúmeros companheiros de farda, não menos que Roberto Marinho, o czar da Globo. Duas vezes ligou-me para avisar sombriamente: “Hoje não durma em casa”. Outra, já em 1984, quando estava fora do governo e recebia os amigos em um pequeno escritório de Brasília, para sugerir um encontro dele com Pietro Maria Bardi, criador do Masp.
Deu-se em um sábado de manhã, a Senhor que eu dirigia estampava na capa uma enorme, kafkiana formiga dotada das feições de Paulo Maluf. Visita ao Masp com êxito total, graças, inclusive, às gargalhadas que Golbery e Bardi deram ao tropeçar na caricatura do candidato às indiretas. Soletrava a chamada de capa: Ou o Brasil acaba com Maluf, ou Maluf acaba com o Brasil.
O professor Martins entende que Golbery, ao decepcionar-se com a fundação do PT, não percebeu que Lula cumpriria sua profecia. O leitor de CartaCapital sabe que sonhávamos, em 2002 e 2006, com um governo bem menos preocupado em buscar afinação com uma realpolitik talvez nem tão real assim. Quem sabe Golbery não imaginasse que Lula chegaria à própria Presidência da República, e que este fato, a eleição de um operário, viesse a representar uma mudança fatal na história do País. Nada, depois de Lula, poderá ser como dantes. É nisso que queremos acreditar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário