A coluna de hoje é do tipo papo de boteco. Ou seja, a mais informal possível, pura falação descompromissada. É claro que também nos botecos as pessoas dizem o que pensam. Às vezes só o fazem nesse ambiente, o mais propício de todos. Lá vai.
De vez em quando, um candidato reconhece alguma virtude no adversário. Quase nunca se trata de objetividade ou de honestidade, mas de ganhar com isso, de fazer agrados aos eleitores, de evitar um choque com a opinião da maioria ou de um grupo. Parece que foi o que tentou a campanha do PSDB, no começo, tanto que o slogan era "O Brasil pode mais" (os chargistas exageram, colocando Serra na garupa do Lula, apropriando-se até da palavra que ele usou para caracterizar a posição de Dilma na campanha).
O mais comum é um candidato dizer que o outro não fez determinada coisa e que ele fez. Ora, é claro que Dilma não distribuiu remédios e que Serra não coordenou o PAC. Aliás, falando sério, por que um ex-ministro da Saúde insiste em dizer que executou programas de saúde e uma ex-ministra da Casa Civil repete que coordenou programas, se apenas fizeram suas obrigações?
Todos os comentaristas pedem programas e idéias. Mas nós - eleitores - só temos debates em que os candidatos têm dois minutos para dizer como vão combater o aquecimento global e propagandas em que eles dizem o que dá na telha de seus marqueteiros, em geral meias verdades.
Acabo de vir da rua, e, na rádio, ouvia uma longa entrevista com o candidato a governador pelo PSOL. Pode ser que também outros sejam convincentes, ou tão pouco convincentes, a depender da ideologia do ouvinte. Mas foi muito interessante ouvir dele como um governo do PSOL arranjaria dinheiro para dobrar o número de salas de aula, por exemplo. Claro que a solução exigiria mudar o rumo do elefante branco que é o Estado, mas a conversa é bem diferente daquela que o partido se obriga a fazer em menos de um minuto na propaganda na TV. Sei também que muitos dirão que isso é exercício acadêmico, que nada tem a ver com a realidade. Acontece que a conversa teria tudo a ver com a realidade, se esta fosse outra, se fosse mudada. Porque a que temos também foi construída.
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Jornais reclamam das quebras de sigilo. De fato, é um horror. Mas eles acham ótimo quando um sigilo quebrado lhes dá matérias de primeira página contra seus adversários. Não entregar a fonte pode ser um direito constitucional. Mas eu acho uma covardia esse papo de "preservar a fonte", que é sempre alguém de dentro da máquina do poder que faz cópias de processos e entrega aos adversários, frequentemente jornalistas e jornais. Parece que não se paga pelo serviço (vai saber!). Se o cara fosse mesmo decente (e valente!), apareceria no jornal denunciando os crimes sobre que informa sorrateiramente e que a imprensa, feliz da vida, publica. E fatura.
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Gostaria de ver um debate decente - bem decente - sobre a telefonia, a mais badalada das privatizações. É claro que não há comparação entre hoje e o tempo em que se declarava linha de telefone no imposto de renda. Mas eu queria ver, no debate, uma comparação entre os preços no Brasil e na Espanha, de onde vem uma das principais companhias do ramo. E que tal um debate sobre diversos modelos de pedágio? Queria mesmo entender melhor. E os programas eleitorais não informam!
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Não gosto de alguns aspectos das campanhas americanas, especialmente da bisbilhotice sobre a adolescência de candidatos. Eles parecem acreditar que, se um candidato fumou maconha quando tinha 16 anos ou se bebeu mais do que devia num happy-hour, então tem problemas de caráter e não pode ser governante. Pois eu acho o contrário. Ou quase. Além disso, têm uma visão muito particular sobre a importância de dizer a verdade: não distinguem entre uma mentira política (o Iraque tem armamentos?) e não dizer a verdade sobre questões privadas (o exemplo pode ser de novo o uso da maconha, que levou Clinton a proclamar que tinha fumado, mas não tinha tragado).
Neste aspecto, prefiro nossa cultura. Crime é crime, bisbilhotice é bisbilhotice. O que menos importa é com quem fulano ou fulana dormiu. Ou não dormiu.
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Jornais querem ter acesso a documentos sobre a fase guerrilheira de Dilma Roussef. A meu ver, se revelarem alguma ação mais grave pela qual ela tenha sido responsável, só deveriam publicar se, em coluna ao lado, confessassem claramente que apoiaram a ditadura que ela combateu com os métodos que, na época, lhe pareceram corretos. Não é decente invocar o contexto histórico para defender-se do apoio ao golpe contra um presidente constitucional e não levar em conta o mesmo contexto para analisar a posição dos adversários. Afinal, Dilma combatia a ditadura que eles ajudaram a montar e a manter. E a ditadura veio antes!
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Não acho que a propaganda de Tiririca seja menos séria que outras, proferidas com cara de gente de bem, como prometer dois professores em cada sala de aula.
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Li que Serra pareceu autêntico em sua fala denunciando o Estado pela quebra do sigilo de sua filha. Os marqueteiros (e alguns psicólogos, como um estrangeiro que deita falação na Folha sobre o caráter dos candidatos, com base em arquear sobrancelhas, por exemplo) dizem que os candidatos devem parecer sinceros, autênticos etc. Que os telespectadores captam sutilezas inimagináveis. Pois eu achei Serra muito convincente quando "brincou" (ele sempre aparece sério como um contador - sua roupa comum ajuda) com a repórter do CQC. Ele "contou" a ela que tinha dito na sua esposa que iria paquerá-la, e que Monica teria respondido "Pois você tem muito bom gosto". Acho que esse trecho deveria ir para a propaganda. Pareceu humano.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.
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