O crime da rua Toneleros, em 1954, que culminou com o suicídio de Vargas, é outro episódio sobre o qual pairam fortes suspeitas de montagem politicamente arquitetada e perversamente executada.
Na madrugada de 5 de agosto, o major-aviador Rubens Vaz foi assassinado na rua Toneleros, no Rio, em frente ao prédio onde morava Carlos Lacerda. Vaz era guarda-costas de um dos mais virulentos adversários do então Presidente Getúlio Vargas. Apelidado por Samuel Wainer de ‘O Corvo’, por semelhanças físicas e identidade de cardápios, Lacerda voltava de uma de suas conferências, desta vez no Colégio São José, cujo tema era sempre o mesmo: a necessidade de afastar Getúlio do poder para onde fora levado graças à estrondosa vitória eleitoral contra a UDN de Lacerda. Dezenove dias após o crime da Toneleros, Lacerda e a direita nativa conseguiram seu intento: Vargas deixou o Catete, porém, morto.
Nenhum historiador tem dúvida de que o suicídio foi o gesto político mais dramático da história brasileira, um caso clássico de eliminação do personagem que fortaleceu sua herança, perpetuada em marcos divisores que ainda balizam a vida nacional. A discussão em torno do pré-sal e da Petrobrás, nesta campanha, é um exemplo. Se ninguém dúvida do peso histórico de Getúlio, o mesmo não se pode dizer sobre o que de fato ocorreu naquela noite na rua Toneleros.
O próprio Lacerda apresentou várias versões para o episódio. Testemunhas, entre elas o jornalista, já falecido, Armando Nogueira, viram Lacerda caminhando normalmente no local após a morte de Vaz, o que contraria sua versão de que teria levado um tiro de 45’ no pé que ‘doía de forma intensa’. Os acusados do crime foram mantidos incomunicáveis e torturados. Lacerda jamais permitiu a perícia do revólver 38’ que portava e com o qual – alegou – enfrentou os algozes. O boletim de registro do seu atendimento, bem como as radiografias do pé supostamente alvejado desapareceram do Hospital Miguel Couto, no Rio.
"Vitória na Derrota" (Casa da Palavra), livro do sociólogo Ronaldo Conde Aguiar, reúne um levantamento minucioso de dados e entrevistas que colocam em xeque a versão de Lacerda em vários aspectos e dão consistência à hipótese de que o crime – ou pelo menos a sua versão vitoriosa – não passou de uma gigantesca farsa para vitimizar ‘O Corvo’,revoltar os quartéis e legitimar a derrubada de Getúlio.
A guerra de bolinhas de papel e rolinhos de fita crepe parece coisa de criança perto do que houve em 1954. Guardadas as proporções, porém, os métodos são muito parecidos e os interesses em jogo de certa forma se repetem. Vale a pena ler alguns trechos do livro "de Ronaldo Conde Aguiar. Seu relato oferece um mirante histórico que ajuda a enxergar melhor o passado e os seus vínculos com o presente.
Trechos de "Vitória na Derrota" (Casa da Palavra)(...)
“Em 16 de maio de 1992, o jornalista Otávio Bonfim, que, juntamente com Armando Nogueira, testemunhou o atentado de dentro do automóvel de Deodato Maia, deu o seguinte depoimento ao historiador Roberto Amaral:
Saí do carro e fui ver quem estava caído. Fui o primeiro a chegar junto a Vaz, que arquejava já nos estertores da morte. Instantes depois, Lacerda sai pela porta principal do prédio onde morava e caminha em direção a Vaz, onde eu já me encontrava. Ele caminha normalmente”.
O depoimento de Otávio Bonfim tem dois aspectos que merecem ser destacados. Primeiro: Lacerda, segundo ele, não saiu do prédio atirando na direção de Alcino, o que conflita com as versões de 1967 e 1977 do próprio jornalista. Segundo: Lacerda, destacou Bonfim, caminhava normalmente, apesar do tiro que teria recebido no pé e que o fazia sentir uma "dor violenta".
Em resumo, juntando tudo isso – "ferido no pé" (ou não) e sentindo uma "dor violenta" (ou não) –,Lacerda "correu" até a garagem, "subiu" uma escada, "percorreu" um pequeno corredor, "saiu" pela porta da frente do prédio atirando (terceira versão) ou não atirando (primeira versão e depoimento de Otávio Bonfim) e caminhou "normalmente" até o local onde o major Vaz estava caído. É bom lembrar que Lacerda fez tudo isso apesar de estar sentindo, enfatizamos, uma "dor violenta".
Até hoje há dúvidas se Carlos Lacerda foi mesmo ferido no pé durante o atentado da rua Toneleros. Segundo José Augusto Ribeiro, Lutero Vargas, que era médico, pôs dúvida quanto ao tiro no pé recebido por Lacerda: "A minha experiência de revoluções e guerra levava-me a crer que não houvesse ferimento algum, pois uma bala de 45, maior de que alguns ossos do pé, teria estraçalhado o pé, exigindo amputação". O comentário de Lutero ganha força quando se sabe que, sem qualquer explicação plausível, toda a documentação sobre o ferimento de Lacerda – boletim de socorro, registro no livro de ocorrência e as radiografias – desapareceu do Hospital Miguel Couto. "O desaparecimento foi constatado, ainda em agosto, pelo médico George Sumner, que atendera Lacerda no hospital, na madrugada do dia 5". Há duas hipóteses possíveis. A primeira: Carlos Lacerda não foi ferido. Tudo teria sido forjado. Afinal, duas testemunhas viram Lacerda caminhando normalmente. A segunda hipótese: Lacerda teria sido ferido, mas por arma de menor calibre, pois um tiro de 45, como vimos, destruiria o seu pé. Tal hipótese reforça a idéia de que havia, pelo menos, um outro pistoleiro.
As três versões dadas por Carlos Lacerda sobre o atentado da rua Toneleros divergem entre si ainda em outros – e importantes – pontos.
Na primeira versão (6 de agosto de 1954), o jornalista teria disparado contra Alcino "antes" de fugir pela garagem do seu prédio. Lacerda estava com o filho Sérgio e o major Vaz na calçada, conversando, quando "um homem pardo", que seria Alcino, abriu fogo contra o grupo, a cinco metros de distância. Mais tiros, acrescentou o jornalista, vieram da esquina da rua Hilário de Gouveia e do outro lado da rua, "numa fuzilaria infernal". Lacerda respondeu imediatamente aos disparos e arrastou o filho em direção à garagem. Ao retornar, viu o corpo de Vaz estendido no chão e percebeu, só aí, que tinha sido ferido no pé.
Na segunda versão (17 de agosto de 1967), como já vimos, a "fuzilaria infernal", ou seja, a tocaia, transformou-se numa troca de tiros entre Lacerda e Alcino. E mais, ao dar essa segunda versão dos acontecimentos, Lacerda nada disse acerca do seu pé.
Na terceira versão (depoimento em 1977), ao contrário das anteriores, Lacerda "não" respondeu imediatamente aos tiros de Alcino. O pânico que tomou conta do filho Sérgio atrapalhou os seus movimentos e ele somente disparou contra Alcino "depois" de deixar o filho na garagem e sair pela porta do prédio. O jornalista percebeu que estava ferido "antes" de entrar na garagem do prédio em que residia.
A versão oficial do atentado (cronologicamente, a quarta versão), que ainda hoje persiste, foi divulgada em setembro de 1954 pelo relatório do Inquérito Policial Militar elaborado pelo coronel-aviador João Adil Oliveira. Segundo ali consta, Lacerda, o filho e o major Vaz foram "inopinadamente" atacados a tiros por um pistoleiro, que logrou atingir mortalmente o militar e ferir no pé o referido jornalista, que, reagindo à bala, provocou a fuga do agressor. A versão oficial, portanto, descarta a possibilidade dos "vários tiros vindos de várias direções" defendida por Lacerda e por seu filho no mesmo dia do atentado. O mandante do crime, de acordo com a versão oficial, teria sido Gregório Fortunato, chefe da Guarda Pessoal do presidente.
Conta ainda o relatório do inquérito que o pistoleiro teve a sua retirada interceptada pelo guarda Sávio Romero, que disparou contra ele. O agressor respondeu ao tiro e feriu, na perna, o policial.
Ferindo o guarda, conseguiu o malfeitor fugir. O policial ainda atirou contra o automóvel que o criminoso utilizou para a evasão e tomou seu número, fato que contribuiu para que, horas depois, o motorista do auto se entregasse à prisão.
A versão de Alcino João do Nascimento – a quinta versão – foi dada ao jornalista Palmério Dória de Vasconcelos, 23 anos depois do episódio. Como já observamos, Alcino negou, com veemência, que fosse um pistoleiro ou que, na época, tivesse sido contratado por Gregório como tal. A sua ida, naquela noite, ao Externato São José e, depois, à rua Toneleros teria sido apenas uma etapa da missão que recebera de Gregório Fortunato: seguir Lacerda, anotar tudo o que ele fizesse, procurando descobrir "alguma falha" do jornalista, até mesmo em negócios. "Quero também os nomes das pessoas que o cercam, o que fazem, o que são", disse Gregório, que ainda recomendou: "Eu preciso de relatos completos." Para a execução do serviço, Gregório deu a Alcino um ordenado, gratificações e uma carteira de policial, do Departamento de Ordem Política e Social – DOPS. "Com essa carteira, eu era um policial", comentou Alcino ao jornalista Palmério Dória de Vasconcelos.
Alcino contou que, ao chegarem à rua Toneleros, ele e Climério – que para lá foram de táxi dirigido por um motorista, Nelson Raimundo de Souza, que conhecia Climério – permaneceram por algum tempo na calçada do outro lado da rua, mas em frente ao edifício Albervania, onde morava Carlos Lacerda. Quando o automóvel do major Vaz estacionou, saltaram três pessoas: Lacerda, o filho e o militar. Segundo Alcino, ele e Climério mantiveram o seguinte diálogo:
– É essa pessoa que estava com ele lá? – perguntou Climério.
– É, é o mesmo que levou ele – confirmou Alcino.
Climério fez uma pausa e ordenou:
– Vai lá e confere o número do carro!
Alcino então atravessou a rua. Quando estava se aproximando, mais ou menos a uns cinco metros do grupo, ouviu os três se despedindo.
O Lacerda e o filho partiram para a porta do edifício, mas ela estava fechada. Voltaram. E o outro, o major Vaz, rodeou o carro pela frente e surgiu na traseira. Quando ele surgiu, eu estava justamente ali, na mala do carro. Ele me atacou e eu saltei.
Se Alcino estiver dizendo a verdade, o que aconteceu em seguida altera substancialmente o próprio significado e a natureza do episódio.
Nesse momento, o Lacerda entrou pela porta da garagem. Aí surgiu um tiro, não sei de onde partiu – uma bala passou zumbindo o meu ouvido. O segundo tiro parece que atingiu o major pelas costas, justamente na hora em que ele me deu uma chave-de-braço, no braço esquerdo. Antes, eu estava pulando e me defendendo, ele querendo me deter. [...] Conforme ele me quebrou, me dando uma chave-de-braço, eu já tinha levado a mão pro revólver. Eu estava com um Smith & Wesson, calibre 45, e dei dois tiros no peito dele, um aqui e outro aqui. Foi coisa rápida. Conforme ele rodou, eu caí. Nessa altura, aqueles tiros chamaram mais tiros, igual pipoca. Me deram – está lá no processo – mais de quarenta e poucos tiros, num trecho de uma quadra da Toneleros, da rua Hilário de Gouveia à rua Paula Freitas.
Alcino confirma que atirou duas vezes, à queima-roupa, no peito de Vaz e que houve um grande tiroteio, o que vai de encontro à expressão "fuzilaria infernal" usada por Lacerda.
É preciso repetir, nesta altura, alguns fatos que podem ser capitais à compreensão dos acontecimentos. Se Alcino não estiver mentindo, uma terceira pessoa (não ele, nem Climério) disparou o tiro que acertou Vaz nas costas. Isto, é claro, põe em relevo um dos pontos mais controvertidos do crime da rua Toneleros e que, no presente livro, pode assumir a feição de uma hipótese, não a de uma versão. Quem quer que tenha sido essa terceira pessoa, ela certamente não pretendia atingir Carlos Lacerda, mas acertar justamente o oficial da Aeronáutica que acompanhava o jornalista, ou seja, o verdadeiro foco dos tiros, segundo a hipótese formulada, teria sido o major Vaz. Afinal, ele recebeu três tiros e Lacerda apenas um. Nada melhor do que um cadáver fardado para provocar, como provocou, a reação dos companheiros de arma e a repulsa da sociedade, entornando definitivamente o caldo da estabilidade política do país. Como disse Tancredo Neves, o cadáver do major Vaz introduziu o "ingrediente emocional" que faltava à crise política já instalada. Foi o componente que faltava ao golpe contra Getúlio.
Há várias e contraditórias versões sobre o episódio da rua Toneleros, mas elas podem, a rigor, ser resumidas a apenas duas, adotando-se pequenas adaptações.
A primeira delas tem a matriz na versão oficial: seguindo ordem de Gregório Fortunato, Climério e José Antonio Soares (outro elemento da Guarda Pessoal), contrataram o pistoleiro Alcino João do Nascimento, que cometeu contra Lacerda o chamado atentado clássico. No tiroteio, acertou o major Vaz no peito e nas costas e feriu Lacerda no pé esquerdo. Esta versão, porém, não responde a duas perguntas. Como Alcino pôde acertar simultaneamente o major Vaz no peito (dois tiros) e nas costas (um tiro)? E indagamos: é possível imaginar que um "pistoleiro treinado", um "profissional do ramo" tenha sido tão incompetente a ponto de, a cinco metros de distância, acertar apenas o pé de Carlos Lacerda, sendo ao mesmo tempo tão preciso justamente nos disparos contra o major Vaz?
O chassi da segunda versão é o depoimento de Alcino dado a Palmério Dória de Vasconcelos. Implica reconhecer que o episódio da rua Toneleros fez parte, e parte importantíssima, de uma conspiração política que tinha como objetivo apear Getúlio Vargas do poder, envolvendo-o num crime político supostamente cometido por membros da sua Guarda Pessoal.
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