Fui o primeiro economista brasileiro a deixar registrado em artigos – tinha uma coluna diária de economia política em “O Globo” – a inevitabilidade do fracasso do Plano Collor. Como era também assessor da presidência da CNI, tentei convencer o presidente, Senador Albano Franco, a mobilizar a cúpula empresarial para consertar o que me parecia o lado mais estúpido do plano, a saber, o congelamento da moeda circulante junto com a poupança. Era difícil fazer isso sem desmontar o plano inteiro, mas era, a meu ver, a única alternativa para salvá-lo.
Albano não conseguiu convencer seus pares. Ao contrário, o então presidente da Fiesp, Mário Amato, intimidado pela demonstração de poder que Collor exalava por todos os poros, chefiou uma comitiva de empresários ao Planalto para um beija-mão vergonhoso ao recém-empossado. A propósito, como haviam dito que o plano era contra os ricos e a favor dos pobres, a caravana empresarial de Amato foi ao Planalto de ônibus, para não parecer que seus participantes eram ricos. Este é o Brasil real, um Brasil que apenas uns poucos conhecem!
Havia um outro caminho: convencer o PSDB a emendar o plano na direção que havia sugerido. Junto com Raphael de Almeida Magalhães e Carlos Lessa, procuramos os próceres do PSDB (então nosso partido) no Congresso, para tentar articular uma emenda. O único que ficou realmente impressionado com nossas ponderações foi Mário Covas. Fez um discurso dramático apontando as falhas do plano. Estava programada uma reunião da bancada do partido na Câmara, e Covas cuidou para que me dessem a palavra, embora, obviamente, eu não fosse parlamentar.
Fiz uma exposição exaltada, talvez mais do que devesse, para chamar a atenção sobre a fragilidade do plano. Paulo Renato falou em seguida, e defendeu a tese oposta: o plano, a seu ver, era muito bom, e o PSDB deveria aprová-lo como estava, sem emendas. José Serra não esteve nessa reunião, pelo menos durante o tempo em que permaneci nela. Mas Raphael foi procurá-lo pessoalmente, e sua posição foi exatamente a de Paulo Renato. Não havia muita saída, mas assim mesmo insisti: fui encontrar-me com Bresser Pereira, único economista integrante da Executiva.
Consegui tirar Bresser da reunião da Executiva para uma conversa rápida. Repetindo o que havia proposto em artigo, disse a Bresser que, já que era inevitável o congelamento do meio circulante junto com a poupança, que se fizesse a restauração da circulação monetária liberando depósitos segundo as folhas de pagamento das empresas. Isso não era nenhuma novidade. Em 1948, acontecera na Alemanha e no Japão. Bresser me respondeu que não podia, porque a folha salarial correspondia a 36% do PIB, e isso estouraria com o plano. Aliás, a ministra Zélia ou alguém de sua assessoria fizera a mesma alegação em face da minha sugestão.
“Bresser, argumentei, 36% do PIB é a acumulação anual de um fluxo mensal de, no máximo, 3%”. “Ah é, redargüiu Bresser. Então a gente propõe liberar 1,5%”. “Mas por que, Bresser, não os 3%”. “Porque é mais fácil para a equipe econômica aceitar”. Claro que não houve liberação de nada, nem de 3% nem de 1,5%, e em dois ou três meses o plano tinha ido para o espaço, determinando uma contração da economia no ano de mais de 4%, com imenso desconforto social por causa do congelamento – algo que, a meu ver, seria uma motivação decisiva no movimento do impeachment.
Essa longa história é para dizer que, a não ser por Covas, o PSDB estava pronto a uma adesão total a Fernando Collor. Fernando Henrique, na posse, ofereceu sua imagem televisiva aos milhões de telespectadores brasileiros no lugar de honra junto ao empossado. Covas segurou a barra, praticamente sozinho. Não me consta, da época, uma única palavra de Serra contra o plano ou contra Collor. Falo do tempo em que Collor estava politicamente forte, não quando milhões se apresentaram nas ruas para depô-lo. Em razão disso, quando denuncia Dilma por receber o apoio passivo de Collor e Sarney, e se vangloria de ter o apoio de Fernando Henrique e Itamar, Serra apela para um simbolismo vulgar e se esquece da verdadeira política ativa que ele apoiou.
É bom dizer que não tenho nada pessoalmente contra Serra. Ao contrário, acho que é um político honrado e limpo, e um administrador público eficiente. A razão porque temo sua eleição é estritamente política: em matéria de política econômica, ele tem certezas erradas. Além disso, se tem havido desvios éticos graves na “turma” do PT, houve desvios ainda piores no PSDB, inclusive em relação a um programa de privatização nefasto aos interesses nacionais e de favorecimento aberto aos amigos do rei, conduzido por pessoas controversas como Ricardo Sérgio de Oliveira, Luís Carlos Mendonça de Barros (demitidos) e – às vezes fora, às vezes dentro da máquina pública – André Lara Resende, todos eles do círculo íntimo de Serra.
Relativamente ao programa de privatização conduzido por Serra no governo FHC, devo dizer que nunca tive uma posição doutrinária ou ideológica contrária a ele. Critique sobretudo a forma, desde Collor. A privatização fatiada da siderurgia foi uma estupidez. A privatização da Telebrás era desnecessária: bastava liberar suas tarifas, como se fez para os privados que a compraram. A privatização de distribuidora elétricas, desde Itamar, sem prévia regulação do mercado, foi um acinte ao consumidor. A privatização da Vale privou o setor público de um agente estratégico do desenvolvimento (coisa que os chilenos não fizeram com seu cobre). Por tudo isso Serra, junto com FHC, pode ser associado a um exterminador do patrimônio público. É impossível tirar dele esse rótulo para a história. Mas que não seja um exterminador do futuro.
J. Carlos de Assis é jornalista, economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPA, autor de mais de 20 livros sobre Economia Política brasileira e mundial, entre os quais “A Chave do Tesouro” e “Os Mandarins da República”, e, mais recentemente, “A Crise da Globalização”, sobre a crise mundial em curso.
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