Depois do colapso do regime de Bretton Woods, a palavra de ordem foi câmbio flutuante. O resultado foi grande aumento da frequência e intensidade das crises financeiras. Depois de 2008, a palavra da vez não é "guerra cambial", que teria sido começada pelos Estados Unidos quando procuraram desvalorizar o dólar, mas que só ganhou esse nome quando o Japão, recentemente, interviu violentamente no mercado do iene para sustar sua valorização. Agora os ministros da economia do G-7 querem que o Fundo Monetário Internacional (FMI) formule novas normas que impeçam a guerra cambial. Para isso, seus economistas deverão abandonar o pressuposto de que o mercado controla bem as taxas de câmbio e admitir que elas voltem a ser administradas, mas no quadro de um acordo que buscaria equilibrar as contas correntes dos países, fazendo-as girar em torno de zero.
Se esse acordo é difícil entre os países ricos, entre eles e os países em desenvolvimento é praticamente impossível. A causa dessa dificuldade está clara para poucos, mas já é intuída pelos governos dos países em desenvolvimento. Esses países têm interesse em receber empresas multinacionais que lhes tragam tecnologia, mas, como acontece com a China, não precisam nem devem incorrer em déficits em conta corrente. O verdadeiro equilíbrio de suas economias não é consistente com esses déficits, como sempre se supôs, nem mesmo com conta corrente zerada, mas com superávit em conta corrente. Não precisam de "poupança externa" para crescer. Déficits em conta corrente apenas levam à sobreapreciação da taxa de câmbio, a mais consumo e geralmente a pouco aumento do investimento.
A explicação para essa asserção contraintuitiva está no fato de que praticamente todos os países em desenvolvimento sofrem, ainda que em graus diferentes, da doença holandesa. Sua taxa de câmbio é definida por commodities que usam recursos naturais abundantes e baratos cujas exportações são lucrativas com uma taxa mais apreciada do que aquela necessária às demais indústrias de bens comercializáveis utilizando tecnologia no estado da arte. Isso vale também para os países asiáticos dinâmicos que, ao invés de recursos naturais abundantes e baratos, contam com mão de obra barata e um diferencial de salários muito maior do que nos países ricos. Se esses países não administrarem sua taxa de câmbio, ela será definida pelas indústrias manufatureiras de baixa tecnologia que utilizam mão de obra não especializada; em consequência, os setores industriais mais sofisticados, que usam mais engenheiros e trabalhadores qualificados, tornam-se não competitivos internacionalmente mesmo que utilizem a tecnologia mais moderna.
Os economistas deverão abandonar o pressuposto de que o mercado controla bem as taxas de câmbio
Para que esses países diversifiquem suas economias e se industrializem, precisam neutralizar essa grande falha de mercado. Precisam deslocar a taxa de câmbio do equilíbrio "corrente" para o "industrial" - para o nível que viabiliza indústrias utilizando a melhor tecnologia. Essa neutralização é feita com o controle completo da taxa de câmbio, como faz a China, ou então por meio de um imposto sobre a exportação do bem que dá origem à doença holandesa. Para os países produtores de petróleo cujo custo de exploração é muito baixo, o imposto necessário pode ser superior a 95% em relação ao valor da exportação. Para países com doença holandesa menos grave, como é o caso do Brasil (devido a recursos naturais) ou da China, devido à mão de obra barata e ao leque salarial grande, o imposto necessário deve girar em torno de 20% a 25%.
Considerado constante o preço internacional da commodity, um imposto proporcional à gravidade da doença holandesa neutraliza essa sobreapreciação porque desloca para cima a curva de oferta do bem em relação à taxa de câmbio e, assim, a leva do equilíbrio corrente para o industrial. Suponhamos que a taxa de câmbio de equilíbrio corrente no Brasil (aquela que equilibra intertemporalmente a conta corrente do país) seja de R$ 2,00 por dólar, e que a taxa de câmbio estivesse nesse equilíbrio.
Nesse caso, se o governo concluísse que a taxa de câmbio de equilíbrio industrial (aquela que tornaria competitivas indústrias utilizando a melhor tecnologia mundial sem qualquer outro auxílio ou proteção) fosse de R$ 2,60 por dólar, e se a soja fosse o único bem que originasse doença holandesa, um imposto sobre a exportação de R$ 0,60 por dólar exportado levaria os exportadores de soja a se recusarem a continuar produzindo e exportando a essa taxa de câmbio porque essa lhes daria prejuízo. Sua recusa continuaria até que a taxa de câmbio subisse para R$ 2,60. Estariam, assim, deslocando para cima sua curva de oferta. Em consequência, a taxa de câmbio se deslocaria para o equilíbrio industrial, e a doença holandesa estaria neutralizada.
Quando um país desloca sua taxa de câmbio do equilíbrio corrente para o industrial ele necessariamente realiza um superávit em conta corrente. Se todos os países que enfrentam a doença holandesa compreenderem esse fato (como começaram a compreender) e a neutralizarem (o que não é fácil), todos terão um superávit em conta corrente, e, em consequência, os países ricos terão um déficit em conta corrente. Um déficit que terão que pagar transferindo a propriedade de ativos (títulos, ações, imóveis) para residentes dos países em desenvolvimento.
Portanto, a tendência é que os países em desenvolvimento transfiram capitais para os países ricos, e não o inverso como parece mais natural. Os grandes superávits que diversos países em desenvolvimento estão experimentando e os fundos soberanos que estão criando já refletem esse fato. É necessário um acordo mundial sobre taxas de câmbio, e esse acordo só será alcançado se forem feitas concessões mútuas. Mas não é provável que os países em desenvolvimento concordem em fazer acordos para zerar seus superávits em conta corrente.
Luiz Carlos Bresser-Pereira economista, é professor da FGV/SP.
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