É curioso o Estadão. Numa matéria atribui a um genérico "brigas" o fator que atrapalha a oposição para traçar uma estratégia para 2014. "Brigas", no caso, é a tentativa de renovação do partido, de livra-lo da herança amarga de José Serra, não os dossiês de Serra contra adversários – como parece ter sido as matérias desengavetadas sobre o cunhado de Geraldo Alckmin.
Na página de opinião, FHC mostra como (não) se fazer oposição.
É um amontoado de críticas pontuais, bordões denotando uma ampla incapacidade de enxergar além do dia seguinte. O pensamento de FHC é binário. Mais ou menos o seguinte:
O papel da oposição é bater sempre.Aqui vai um cardápio de temas para quem quiser bater. E ponto.
Não há ideias estruturantes, conceitos mobilizadores, visões sistêmica do país para os próximos dez ou quinze anos para, a partir daí, definir uma estratégia de (re)construção partidária.
O drama do PSDB – que compromete seu futuro político – é enorme. Tinha uma imagem pública que se esboroou no período FHC-Serra. Essa imagem garantia adesão de segmentos amplos da classe média, um pacto com a mídia e permitia ao partido ser um imã, atraindo boas ideias dos segmentos modernizadores do país. Nem precisava se esforçar.
Grosso modo, no período pré-Internet três grupos participavam da formação da imagem de partidos, personagens, produtos.
No primeiro nível, os formadores de opinião, conjunto restrito de economistas, acadêmicos, jornalistas, empresários, lideranças civis, especialistas setoriais que identificam virtudes ou defeitos e formavam o primeiro e mais consistente julgamento.
No segundo nível, os propagadores de opiniões, influenciados pelo primeiro grupo. Integram esse conjunto colunistas da velha mídia (alguns poucos são do primeiro nível), editores, âncoras de rádio e TV e, num plano mais amplo, a estrutura de opinião de rádios e TVs por todo o país, operando como caixa de ressonância..
No terceiro nível, o eleitor propriamente dito, a maior parte dos quais se escuda em ideias vagas sobre o tema analisado, impressões apenas, formadas a partir de ecos do debate no segundo nível.
Apesar do circuito se mover muito mais por impressões e formação superficial de imagem, se não tiver bem alicerçado no primeiro nível, dança.
A formação de imagem do PSDB
Graças a algumas figuras referenciais e a um conjunto de circunstâncias, no final dos anos 80 o PSDB tinha conseguido criar uma imagem que se consolidou nos anos seguintes.
Essa imagem se deveu a Franco Montoro e Mário Covas, acertando as contas fiscais do Estado; e a Sérgio Motta montando o novo modelo das telecomunicações e a um conjunto de jornalistas que entendeu o papel do partido nos novos tempos. Depois, incorporou os economistas do Cruzado, com toda a dose de fantasia que estimulava a opinião pública.
De um lado, conseguia se desvencilhar da imagem fisiológica do PMDB – consolidada no ato de partilha de cargos no governo Sarney. De outro, sugeria uma postura de centro-esquerda não-dogmática, de partido comprometido ao mesmo tempo com a eficiência e as políticas sociais, distanciando-se do estilo mais radical e aguerrido do PT.
Era o anti-malufismo com quem uma certa esquerda sempre sonhou.
Nos anos 90, havia duas linhas hegemônicas no partido: a de FHC (que torna-se hegemônica apenas com o Real) e a de Mário Covas.
Em 22 de outubro de 1998 tracei as diferenças básicas entre o PSDB de FHC e o de Covas:
«Mais do que um anti-Maluf, Covas é o avesso de FHC.
FHC é homem de grandes voos intelectuais, Covas, um cartesiano, até certo ponto rústico. FHC se inebria com as formulações teóricas, Covas é o cultivador dos valores básicos da gerência. FHC persegue os grandes momentos, Covas se compraz com as cobranças diárias. FHC é o arquiteto, Covas, o engenheiro. FHC é o condutor, Covas, o comandante.
O resultado final é que o Brasil é um quebrado, que FHC explica com justificativas sofisticadíssimas. E São Paulo, um Estado saneado, sem precisar explicar nada.
A fórmula de Covas é tão velha e eficiente quanto a descoberta da gerência. Definiu os valores básicos de um bom gestor: ênfase na gerência e no controle das contas públicas. E coragem de dizer não.»
Infelizmente a morte precoce de Covas acabou desequilibrando as discussões internas e deixando como único referencial a superficialidade de FHC.
O governo FHC teve dois momentos que ajudaram a plantar o ovo da serpente no âmago do PSDB.
Na primeira parte (até a crise de 1998) um deslumbramento acomodado, que o fez desatento para o enorme potencial de transformações do país e ao variado contingente de homens públicos que seu governo atraiu, grupos de especialistas em diversas áreas dispostos a transformar o país.
Deixou passar um enorme contingente de possibilidades de consolidação de um novo modelo, em substituição ao discurso único da estabilização da economia.
O segundo momento foi o da crise do "apagão". Em vez de crescer na adversidade, FHC se encolheu, reduzindo a pó a imagem de que o PSDB seria garantia de boa gestão.
Com sua falta de gana, de vontade transformadora, só tiveram espaço no seu governo pessoas sem a menor vontade de mudar nada – a não ser a própria vida. Abriu mão dos homens da inovação, das tentativas de reforma administrativa, do próprio modelo das telecomunicações, após a morte de Sérgio Motta.
Depois dele, panorama de terra salgada. Não houve renovação política nem intelectual no partido. Instaurou-se uma gerontocracia dominada por FHC e José Serra – graças às suas ligações com o grupo da velha mídia formado no pacto de 2005.
Fecharam os espaços para qualquer espécie de arejamento. Envelheceram as ideias dos cientistas sociais, os intérpretes não conseguiram entender o novo país, as novas mídias. Criou-se uma nova linha de intelectuais de rinha de galo, sem e envergadura da geração anterior, envoltos em um superficialismo guerreiro de envergonhar primeiro anista de política.
A pá de cal foi o governo Serra em São Paulo. Como Ministro da Saúde, Serra preservou espaço dos sanitaristas e conseguiu passar a impressão de reencontro do partido com suas origens.
No governo do Estado, repetiu em tudo o padrão Maluf, na ênfase exclusiva na construção civil, na extraordinária leniência com a especulação imobiliária (enquanto prefeito), na falta de visão de futuro, na truculência, na incapacidade de gestão (nesse ponto conseguiu superar o próprio Maluf) e, na campanha, no endosso a teses medievais.
Agora, tenta-se uma reconstrução impossível.
A perda do bonde
Voltemos aos esforços atuais para construir uma nova imagem. A falta de rumo é ampla e fica nítida no programa gratuito do partido. A "aula" de FHC se limita a tentar reabilitar conceitos dos anos 90, o partido dos gestores, o partidos dos honestos, amplamente superados pelos fatos e pelos tempos.
Analisemos os pontos que poderiam ser âncoras no processo de (re)construção da imagem do partido:
Gestão moderna
Perdeu o bonde. Após o ajuste fiscal de Covas, havia tentativas de avançar sistemas de gestão em São Paulo, propósitos ousados mas que foram abortados pela morte precoce do governador. No principal reduto tucano, Geraldo Alckmin nunca mostrou propensão à gestão moderna.
A gestão Serra teria sido a grande oportunidade do PSDB mostrar um contraponto que fosse. Mas ainda será considerada uma das mais ineptas da história moderna de São Paulo. Creio que nem o governo Fleury foi tão medíocre e desmobilizador.
Além disso, a expansão da informação está liquidando a blindagem sobre a suposta gestão técnica em São Paulo. O aparelhamento da máquina estadual é amplo e irrestrito. Os esquemas de financiamento de campanha em nada diferem dos demais partidos e do modelo político brasileiro.
Resta a experiência de gestão em Minas. Além de ser, por si, insuficiente para definir um partido, não é mais marca tucana. Eduardo Campos faz o mesmo (ou até mais) em Pernambuco. O governo Dilma será um avanço em cima das bases plantadas pelo modelo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) de gestão. A bandeira da gestão está sendo transferida irreversivelmente para Dilma.
Grande técnico, a "Dilma" de Aécio, Anastasia representa muito mais o gestor apolítico do que um padrão tucano. Seus avanços estarão contabilizados na cota dos governantes gestores – independentemente da cor partidária -, assim como o do (supervalorizado) Sérgio Cabral, ou de Paulo Hartung.
Mesmo no ambiente dos municípios – onde é mais fácil implantar modelos de gestão – não há a menor criatividade do partido em definir um modo tucano de governar.
Novo padrão de desenvolvimento
Dois valores tendem a ser hegemônicos nos próximos anos: a questão da mobilidade nas grandes metrópoles e a questão ambiental. O chamado desenvolvimento saudável e sustentável tornou-se um desses fatores essenciais.
Qual a marca do PSDB nesses dois campos? Enquanto prefeito, Serra flexibilizou mais o plano diretor de São Paulo do que o próprio Paulo Maluf. Seu herdeiro Gilberto Kassab continua preso aos mesmos padrões de décadas atrás. Não há nenhuma marca tucana em nenhuma dessas frentes.
Visão social
A bandeira mais relevante da atualidade, que foi entregue de bandeja para Lula.
Nas discussões políticas atuais, uma das maiores bobagens é a história de quem começou o quê? O papel do Estadista não é o de criar projetos ou ideias do nada. Há um estoque de ideias e de potenciais para serem explorados. O papel do político é identificar esses ativos e colocá-los em prática, massificar, dar dimensão.
Esses conhecimentos frequentaram a casa de FHC, através de dona Ruth. Mas faltava o básico: sensibilidade social, identificação com o país e o povo e incapacidade de pensar grande. E, mais que isso, uma base social ao PSDB, quadros nos movimentos populares. Até a identificação com os movimentos de base da Igreja Católica foram para segundo plano no período FHC.
A impossível reconstrução
O que resta para reconstruir o PSDB?
Ouso dizer que será impossível essa reconstrução.
O primeiro ponto é a total carência de novas ideias. A única referência de ideias é FHC, que há muito deixou de tê-las. Não se chegou nem ao básico: uma interpretação das transformações atuais do país, do papel mobilizador das novas mídias etc.
Pior, não há nada no partido que atraia uma nova geração de acadêmicos criativos. A cara do partido é José Serra e aqueles arreganhos fundamentalistas, é o Álvaro Dias que todos conhecem e o Beto Richa, que ainda não se sabe a que veio, Geraldo Alckmin, que apenas tem imagem de bom moço.
Resta a imagem solitária de Aécio Neves, que carrega uma bandeira – da gestão -, a fama de bom articulador político, e só. No restante, ainda é um vazio de ideias e de conceitos.
É pouco pau para montar uma canoa.
A Aécio caberia o papel de aglutinar outras estrelas, aproximar-se de políticos progressistas, atrair os mercadistas.
É desafio considerável que esbarra, numa ponta, no peso da imagem de Serra, o ranço embolorado deixado no partido nas últimas eleições, a certeza de que enquanto tiver fôlego, FHC sempre será um obstáculo a mais, as resistências tanto de setores de centro-esquerda quanto dos mercadistas à herança de Serra.
Na outra ponta o desgaste de brigas intestinas, os tiros pelas costas, o uso da mídia para ataques – como as matérias sobre o cunhado de Alckmin, desengavetada, segundo suspeitas dos alckmistas, pelo pessoal do Serra.
O exercício da futurologia é complexo. Depende muito de intuição, de saber identificar fatores que poderão levar as decisões para um lado ou para o outro.
Por mais que me esforce, não consigo imaginar um PSDB coeso.
O quadro mais provável será o de um período de desgaste e, mais à frente, uma confluência de quadros partindo para a construção de uma nova alternativa de oposição. E conferindo justo descanso a FHC e Serra.
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