Cada busca parece ser inútil pois traz a impressão de que os corpos dos guerrilheiros do Araguaia jamais serão encontrados: o Brasil, ao contrário da Argentina e do Chile, resolveu não julgar os torturados dos anos do regime militar, nem tornar público o paradeiro dos militantes da guerrilha organizada pelo PCdoB na primeira metade dos anos 70. Cada reflexão em torno do Brasil dos dias atuais também parece assustadora. Basta ver o que acontece em Brasília com o caso Palocci, que não chega a um final ético, e o confronto, violento, entre a polícia e os estudantes na cidade de Vitória, onde o governo recorre à tropa de choque e não respeita direitos humanos elementares em nome da ordem. Tudo isso, propõe a questão: que democracia estamos construindo?
O episódio da guerrilha encontrou, entre os dia 29 e 30 de maio, uma fato construtivo. A prefeitura de Porto Franco, no Maranhão, homenageou o médico guerrilheiro João Carlos Haas, dando o seu nome ao Complexo Esportivo da cidade. João Carlos, o Dr. Juca como ficou conhecido, gaúcho de São Leopoldo, no inicio dos anos 70, trabalhou duro para melhorar as condições de vida da população de Porto Franco, nas proximidades do Araguaia. Hoje, a cidade luta para se emancipar do Maranhão. O prefeito, Deoclides Macedo, eleito com 95% dos votos não é do PCdoB, mas do PDT, do venerando Leonel Brizola.
A família de João Hass foi representada por sua irmã, Sonia Haas, comunicadora de talento, que tem sido incansável na busca do corpo do irmão, junto com familiares dos guerrilheiros, todos desaparecidos, que morreram em combate (ou sob tortura) a partir de 1972, até 74. Calcula-se que 76 pessoas morreram. Do PCdoB, foram 59. Se vivo estivesse, o médico João Haas estaria completando 70 anos.
Na mesma semana em que o médico foi homenageado, o caso Palocci trouxe aos brasileiros o vento fétido de um drama que se arrasta há anos: por que os homens públicos não são submetidos a investigações antes de serem escolhidos para cargos importantes? Palocci certamente não ficará no poder e se ficar perdeu a credibilidade. Mas o caso Palocci, é preciso que se entenda, é causa, não consequência. O que aconteceu com os antigos ideais do PT? Eis a questão.
O homem público no sentido filosófico do ser não pode, nem deve escudar-se sob recursos legais para não prestar esclarecimentos à população. A presidente Dilma Rousseff sabe dessa nuança, todos sabem que quando o interesse coletivo grita é imperativo que os interesses individuais passem a plano secundário. Por que manter Palocci? A presidente precisa ser a primeira a responder a essa questão. A presidente e as lideranças petistas. Não existe mais o grande homem. O grande articulador, o eleito. Existem sim os interesses. Justamente o que precisa acabar. Se há um interesse a zelar, este é o interesse público, o interesse da identidade de um partido ou de um governo. O Rei da França começou a cair quando se começou a falar mal da família real: nas ruas, nas feiras, nos restaurantes. Perdeu-se o respeito pelo que era sagrado. A Revolução Francesa veio a seguir.
A verdade é que o PT precisa se perguntar, e responder, onde foi parar o "eu" transformador da sociedade, herdado da guerrilha do Araguaia e de todos os movimentos antiditatura que tiveram, no próprio PT, seu protagonista chave com as greves do ABC. Onde foi parar o "eu" transformador da sociedade? Conhece-te a ti mesmo, eis a fórmula socrática, que Hegel deu dimensões de consciência histórica, que o partido precisa levar à prática. E levar já, sob pena de sucumbir ao grande tribunal da história, o tribunal da sociedade.
Na realidade, o PT virou as costas para as luzes de uma democracia verdadeira, onde a ordem (a lei) é construída pela sociedade no seu movimento. Substitui o homem de espírito, consciente, pelo homem econômico, que só pensa no consumo e nos seus interesses. Com isso, abstraiu a política de massas. Esqueceu as origens. O PT está se transformando na velha Restauração francesa, renegando a filosofia das luzes se é que um dia realmente a abraçou e fazendo preponderar o consumismo, a guerra pelo poder, o privilégio de personagens como Palocci se esconderem sob o manto do sigilo para não explicar como se deu o seu enriquecimento. Legítimo? Ilegítimo? O ministro precisa explicar. Não pelo convencimento, mas pela lógica da exposição.
Mas não é só Palocci. O caso Palocci é consequência, não causa. É necessário ir fundo. O PT precisa ser referência como foi o PCdoB nos idos da ditadura. O PT precisa mudar a forma de fazer política e mudar as relações econômicas. O que é anacrônico precisa ser banido de cena. Onde está o antigo ethos partidário?
Por fim, o caso do movimento dos estudantes em Vitória. O governo do Estado prende, espanca, joga bombas de gás lacrimogêneo nos estudantes que desejam passe livre para os ônibus. Movimenta a tropa de choque (contra estudantes? Logo serão os trabalhadores, a gente simples, o cidadão comum). O que é uma expressão de vitalidade, a revolta estudantil, passa a ser tratado como uma doença. Falta preparo político aos governantes do Espírito Santo. Falta preparo à polícia. O que está acontecendo nas ruas de Vitória não é próprio de uma democracia. E nem poderia ser.
A imprensa pode até ficar momentaneamente ao lado do governo, como parece estar, alinhando-se em defesa da ordem. Mas existe ordem com os preços escorchantes do transporte? Quem quebra a ordem: os concessionários do transporte e o poder público ou os estudantes? Claro, não são os estudantes. Cedo ou tarde, os governantes do Espírito Santo responderão pelo seus atos repressivos. O Brasil precisa ser revisto de alto à baixo. A relação entre o Estado e os que detém o poder econômico deve ser substituída, e já, pela relação entre o estado e a sociedade. Os interesses precisam coincidir. A sociedade precisa se mobilizar.
João Haas escreveu sua última carta à família em 1968. Dizia que estava "bem". Em 1980, a família Haas soube que João estava morto. Nunca encontrou seu corpo, nunca soube exatamente as circunstâncias. Em cada busca, uma esperança renovada. A expectativa de que familiares de companheiros de João possam superar as lembranças desse tempo morto, dessa tormentosa assimetria que permanece em segredos não desvendados. Pergunta: por que o Brasil que procura a liberdade acoberta essa passado sombrio?
Não é o mesmo Brasil que se recusa a se indignar com os fatos que hoje ocorrem em Brasília? Os estudantes de Vitória vêm dando um exemplo de indignação. Que lições podem ser extraídas do que está acontecendo nessa cidade de tantos encantos naturais e com uma crônica oficial agora tão triste? A julgar pelas palavras de João Haas, estamos vivendo um processo. Como ele mesmo lembrou: "Nenhum sacrifício será feito em vão." O tribunal da história saberá julgar os seus réus, com a vantagem de que esse julgamento, com a Internet e as redes sócias, não fica mais num tempo futuro, remoto devir. O julgamento é hoje. Agora. Passado, presente e futuro, são, de fato, um tempo único. Singular. Um tempo novo que conspira contra os que falam em democracia, mas só pensam na ordem criada por poucos. Não a ordem que nasce das aspirações sociais.
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