Desdobramentos da crise política - 1
Estou preparando uma série de quatro artigos tentando avaliar os desdobramentos da crise política.
O primeiro sairá agora. Os demais respectivamente às 12, 13 e 14 horas.
É bobagem achar que alguém ganhou nesse jogo insano de denúncias e tapiocas. Todos perderam, acelerou o processo de degradação institucional do país, o modelo político tornou-se mais e mais obsoleto, trazendo um conjunto de incertezas no horizonte.
Vamos por partes, para entender a abrangência dessa crise e a dificuldade em prever seus desdobramentos.
O ponto central, o pano de fundo desse terremoto inédito é o fim do monopólio de opinião e de informação, devido ao advento das novas mídias e da proliferação dos bancos de dados eletrônico.
O modelo político brasileiro, até agora, funcionava com o Executivo montando alianças fisiológicas com grandes partidos ônibus - PFL-DEM, PMDB -, representantes de oligarquias regionais. Nada que diferisse muito de outros momentos da história. Esses políticos garantiam votos no Congresso e voto de cabresto de seus redutos - uma opinião pública pouco influenciada pela grande mídia, a exemplo do deputado gaúcho que se lixou para mídia.
Essa opinião pública localizada era importante no período eleitoral. Fora, o jogo se dava com o jornalismo que cobria especificamente o poder central, o dono da chamada opinião pública - como a conhecemos até alguns anos atrás.
O modelo se sustentava em cima de uma hipocrisia ampla e generalizada - típico das democracias ocidentais na era pré-Internet. Partidos políticos se fortaleciam articulando interesses de seus políticos, de grandes grupos associados, montavam alianças com o Judiciário, com altos funcionários públicos. Depois, o discurso da busca do bem comum era mediado pela mídia. Quando não se conseguia cooptá-la, a mídia ia até a gôndola, sacava escândalos seletivos e a produzia crises políticas, quadro que se tornou mais agudo no país devido às disfunções do modelo político brasileiro.
Essa articulação acabou. Com a expansão das informações, das investigações criminais, uma opinião pública cada vez mais influente passa a ter acesso a todo estoque de denúncias abafadas. E começa a colocar em xeque todas as instituições: o Executivo, o Judiciário, o Legislativo e… a mídia.
Desdobramentos da crise política - 2
A mídia passa a entrar em xeque quando o saco de irregularidades políticas é aberto e o público passa a entender os critérios de seleção de escândalos.
Exemplos muitos simples.
1. Na semana passada, a Folha deixou escapar uma matéria em que mostrava que uma empresa - possivelmente ligada ao ex-governador de Goiás Marcone Perillo - participou de licitações fraudadas de instituições estaduais paulistas. Houve evidências - segundo a matéria - de que a Casa Civil de Serra atuou diretamente para retirar o nome da empresa do inquérito. Se confirmado, é crime.
2. Um mês atrás, nas gravações feitas pelo Ministério Público Estadual gaúcho contra a governador Yeda Crusius, aparecem indicações de que empresas envolvidas em manipulação de licitações de merenda escolar, em São Paulo , estavam atuando junto ao esquema Yeda.
3. No relatório publicado pelo Estadão desta semana - sobre a Satiagraha - os emails de Roberto Amaral envolvem políticos, autoridades e reguladores tucanos. O tema não mereceu chamada de capa nem será aprofundado.
4. O caso Camargo Correia sumiu completamente do noticiário. A que custo?
5. O caso Safra-Madoff sumiu completamente do noticiário.
Nenhum desses fatos será aprofundado pela mídia. Antes, não se saberia dessas omissões; agora, se sabe.
“O Caso Veja” foi apenas o primeiro episódio de desvendamento desse jogo. Mas a cada dia cada manobras, vendas de matérias, negócios com Secretarias de Educação, perdão de dívidas de impostos, jogadas de mercado virão à tona.
Não se inverta a lógica da mídia e se passe a achar que toda corrupção é tucana. Ela é intrínseca ao modelo, é do PT, do DEM, do PV, do PSB.
Se se for escarafunchar os negócios da Eletrobras com a Cemar, no governo Lula, os do Collor com o Canhedo, os de Itamar com José de Castro e Eduardo Cunha, os de Sarney com Machline, Saulo e companhia, os de FHC com os fundos de pensão, em benefício a Daniel Dantas, se verá que ninguém escapa.
A diferença entre eles foi o tratamento dado pela mídia, quando ainda tinha o monopólio da notícia e da denúncia. A capacidade da mídia de selecionar o escândalo e ter o monopólio da escandalização lhe conferia um poder que a fazia pairar acima dos partidos e dos demais poderes.
Agora, não tem mais.Mais que isso, nos próximos anos, outros grupos entrarão no mercado da comunicação e da informação, de novas empresas, mais ágeis e criativas, aos grupos de telefonia - imensas vezes maiores do que os grupos jornalísticos - além de todo o universo que transita na Blogosfera. No final desse processo, dos grupos atuais provavelmente restará apenas a Globo.
É essa perspectiva pouco otimista que explica a loucura que tomou conta dos grupos tradicionais de mídia, levando-os a ultrapassar qualquer limite prudencial.
Desdobramentos da crise política - 3
Em Brasília há uma comemoração do fracasso da mídia. Com esse amontoado de campanhas destrambelhadas, a mídia não conseguiu derrubar Sarney, não conseguiu desmanchar a aliança PT-PMDB, não conseguiu deter o avanço da candidatura Dilma. Significa que Lula e o PT venceram? Não necessariamente.
É impossível manter o jogo político com a quebra da legitimidade. Pactos com Sarney, com o PMDB fisiológico, são pedras no estômago de qualquer cristão.
Até agora esse jogo era superado em nome da governabilidade. Junto a segmentos independentes da opinião pública - e mesmo junto a setores criadores do PT - o maior fator de legitimidade de Lula é justamente a mídia, as tentativas frequentes de golpes políticos que cria uma espécie de cadeia da legalidade no seu entorno.
Acontece que esse pragmatismo, antes visto como essencial para assegurar a governabilidade, está se esgotando. E vai se esgotar mais rapidamente quando ficar claro que a mídia não possui mais o poder desestabilizador que acredita ter. E quando as novas mídias expuserem mais ainda as entranhas da República.
O racha que se observa agora no PT, com a saída de Marina Silva, com Suplicy e Mercadante procurando se afastar da imagem do partido, é um risco concreto, muito mais concreto para o partido - e para seus candidatos - do que as campanhas destrambelhadas da oposição.
A mídia exagera ao centrar toda a batalha no campo da opinião pública e perder foco no leitor. O governo erra ao supor que toda a batalha se dá no campo eleitoral, junto aos milhões de eleitores que veneram Lula.
De 2011 em diante, mesmo que vença um candidato de Lula, não é ele quem estará no poder. Se não se tratar de costurar, desde agora, teses legitimadoras, alianças legitimadores, se não se procurar devolver a legitimidade ao partido, principalmente, se não se passar a estudar seriamente esses novos tempos, a era da plena informação, haverá uma guerra permanente paralisando o país.
Sem a reconstrução do sonho, o próximo governo será uma crise permanente, o jogo político uma guerra sem quartel, seja Serra, seja Dilma, seja Ciro o eleito.
Desdobramentos da crise política - 4
Para as próximas eleições, haverá bandeiras legítimas do governo Lula a serem empunhadas. Essa ideia de que o governo é constituído apenas de alianças espúrias torna-se forte quando todo o foco da mídia está na escandalização.
Baixada a poeira - porque não há priapismo midiático que sustente dois anos de denúncias - as bandeiras ficarão mais nítidas:
1. A opção pelo social, muito mais que seus antecessores, muito menos do que teria sido possível, se a política monetária fosse menos predatória. Mas como a oposição irá criticar o ponto mais vulnerável de Lula, se a mídia está há 8 anos repisando que o melhor de Lula é o BC?
2. Montagem de uma rede social que mudou a cara do país, especialmente com o Bolsa Família, Luz para Todos, aumento do salário mínimo e Prouni.
3. Avanço na modelagem das relações federativas, através do modelo PAC: União definindo regras e recursos, estados articulando-se com setor privado e tocando as obras, méritos políticos repartidos entre ambos.
4. Retomada de investimentos básicos, como infraestrutura, saneamento e moradia (a depender dos resultados a serem alcançados ainda em 2010).
5. Nova inserção internacional, como o reconhecimento sobre o salto do país no cenário mundial.
6. O pré-sal com todo seu potencial de redefinir a política industrial.
E haverá os pontos fracos:
1. Aparelhamento da máquina.
2. Incapacidade de avançar em reformas gerenciais mais profundas.
3. Incapacidade de tornar a inovação ponto central de seu governo.
4. Incapacidade de instituir centros de pensamento estratégico capazes de definir o futuro de forma consistente.
Para as eleições, a oposição está em um mato sem cachorro. Não poderá falar dos juros, porque presa ao discurso mercadista da mídia. Não poderá propor alternativas aos programas sociais. O câmbio seria a grande bandeira, mas dólar é papel e câmbio baixo é lucro para os grandes aliados da oposição, a mídia.
Tivesse fôlego, Serra poderia ter feito uma revolução em São Paulo. Aqui , em se plantando, toda ideia dá. O estado tem as melhores universidades, a mais abrangente estrutura de instituições empresariais, institutos de pesquisa, distâncias pequenas. Não conseguiu sequer desenvolver um modelo de gestão adequado, como Aécio fez em Minas.
A pecha de “mentirosa”, “arrogante” e “atropeladora” pegou em Dilma, mas especificamente junto ao eleitorado de Serra - que não é simpático, não é jeitoso. Aumentou a resistência a ela, onde resistência havia.
E depois das eleições, eleita Dilma, Ciro ou Serra? Essas loucuras da mídia e da oposição - diretamente insufladas por Serra - terão um custo. Suponha Dilma eleita. Como governar sem o sonho? Como manter as alianças espúrias em nome da governabilidade, em um mundo em que as informações circulam cada vez mais e de forma mais intensa.
O dilema será esse. O modelo político morreu. Estamos em uma fase de transformações profundas e de uma transição particularmente demorada. Os próximos anos abrirão ao país as maiores oportunidades da sua história. Se não se acertar o eixo político, se poderá colocar muito coisa a perder.
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