Li com atenção, na semana passada, o diálogo do presidente Henrique Meirelles com Wall Street. Segundo o jornalista Alex Ribeiro, a pergunta recorrente foi “porque o mercado financeiro doméstico anda tão nervoso com câmbio e juros?”.
Aparentemente, a delegação do Banco Central viajou para garantir a imagem de um processo sucessório bem tranquilo. Certamente, a presença de Henrique Meirelles e sua palavra quanto ao processo sucessório foi absolutamente tranquilizadora. Afinal de contas, há pouco tempo, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, declarou que o dólar brasileiro deveria ficar a R$ 2,70. Segundo o ministro, com essa cotação o Brasil seria industrialmente competitivo com a China e com a Índia. Como nada aconteceu no mercado de câmbio, a dedução nossa e de Wall Street é que o presidente Meirelles tem controle total e completo sobre os juros e o dólar e sua presença em New York reitera a total confiança de Wall Street. Tanto é assim que banqueiros americanos afirmaram que decisões imediatas do BC sobre câmbio e juros já não afetam mais as decisões de investimentos estrangeiros no Brasil. A presença do presidente Meirelles foi a garantia de que “tudo continua como antes no Quartel de Abrantes” ou, como os ingleses em Gibraltar, o presidente Meirelles é inamovível.
A provável futura elevação de juros e a projeção do BC de cobrir, em 2010, o déficit de transações correntes de US$ 40 bilhões com o ingresso de US$ 45 bilhões em investimentos estrangeiros diretos (IED) permite ao especulador mais cauteloso afirmar que é bom aplicar no Brasil, obter os juros reais mais elevados do planeta e, eventualmente, ter em dólar um ganho “surreal” se o real se valorizar.
O Brasil continua indexado. Os preços administrados – notadamente as tarifas de serviços públicos e a pauta de energia elétrica – têm caminhado por cima da inflação. Os preços administrados no IPCA são cerca de 33% do índice, ou seja, como disse A. Modenesi, do IPEA, a taxa primária de juros (Selic) tem que ser maior para uma dada meta de inflação.
A persistência da inflação brasileira é inquestionável. Durante a crise de 2009, o mundo inteiro entrou em deflação e o Brasil preservou os seus 4,5% de alta de preços. A inflação brasileira não é residual somente; é resistente. Permite aos preços indexados serem cada vez mais relativamente elevados (hoje o Brasil pratica uma das mais elevadas taxas de energia elétrica residencial do mundo, apesar de ser um paraíso hidrelétrico e, antes da privatização, ter uma das mais baixas do planeta); permite ao BC, em nome de uma taxa de juros de equilíbrio, praticar a mais elevada taxa de juros do planeta; facilita aos bancos preservar o spread ultra elevado e balanços deslumbrantes. O Brasil, com indicadores absolutamente medíocres, viu o lucro de seus bancos crescer 8% em 2009.
Na perspectiva dos que ganham com os juros altos, a inflação resistente é o argumento perfeito para optar por um crescimento econômico rastejante e medíocre. De 2003 a 2008, entre os países da América Latina, o crescimento do PIB brasileiro somente superou a Guatemala, Nicarágua, El Salvador e México. Perdemos para a Argentina, Venezuela, Equador e Bolívia.
Nem crescimento, nem estabilidade. O presidente Meirelles já deu seu recado para Wall Street: fiquem tranquilos pois o festival brasileiro continuará recebendo, da melhor forma possível, os capitais especulativos ciganos.
O longo e tradicional processo inflacionário brasileiro, desde sua reativação após o Golpe Militar de 1964 (a partir de 1968, a taxa inflacionária foi restabelecida) expressa uma correlação de forças em que os donos do poder sempre conseguiram manter seus preços reajustados à frente dos salários. A inflação depreda o capital sob forma monetária e financeira: favorece o devedor em relação ao credor. No Brasil, os donos do poder obtiveram a indexação patrimonial-financeira e, a partir da tesouraria dos bancos comerciais, puderam converter sua caixa em “poupança” financeira, defendida da inflação. Foi criada no Brasil, entre fins dos anos 60 e início dos 70, uma defesa patrimonial perfeita e circularam dois dinheiros: um no bolso das pessoas físicas, que se desvalorizava dia a dia e outro no caixa das empresas, sob a forma de aplicação de curtíssimo prazo no mercado monetário defendido da inflação. Na corrida de preços e salários, sempre era possível reajustar preços preventivamente para reposição de estoques. Obviamente, os salários vinham sempre atrás e, por mais que os negociadores sindicais tentassem encurtar prazos e fórmulas de reajustes, era possível acelerar antecipadamente a correção dos preços. Na corrida, o salário sempre vem depois dos preços e, com a indexação financeira, nenhum cavalo quebra suas pernas devido a perda patrimoniais. Os donos do poder aceitavam a aceleração inflacionária e apenas resmungavam quando algum governo pretendia controlar preços. O setor público controlava os preços das estatais, que perdiam posição. A leitura ideológica neoliberal condenava o controle de preços, considerava as estatais ineficientes e estigmatizava o déficit público como o responsável pela persistente inflação.
Sabemos que a Década Perdida assistiu diversos ensaios de estabilização, inclusive o Plano Cruzado, que desindexou radicalmente. Na ausência de sustentação política, e como um canto de cisne do sonho do progresso econômico e social, a hiperinflação foi utilizada para esterilizar a Constituição de 1988 e abrir caminho para sua desconstrução pelo ideário neoliberal. O Plano Real fez uma desindexação orquestrada, porém preservou a defesa patrimonial. Após variadas tentativas, foi adotado o modelo de Metas de Inflação, que converte o Banco Central no administrador de dois preços-chave: juros e câmbio. O sistema financeiro nacional – banco e mercado de capitais – percebeu na taxa de inflação residual um poderoso aliado para justificar a taxa real de juros elevada. O Banco Central articula juros com câmbio, e a combinação de juros elevados com real valorizado é “ouro” sobre azul para o tecido especulativo. Como suprema perversidade, os fundos da previdência complementar têm sua rentabilidade atrelada aos juros altos.
Nesse cenário, quem perde são os brasileiros que não têm carteira assinada e os filhos das famílias já integradas que esbarram em um mercado de trabalho fechado e com poucos empregos de qualidade. O Brasil se converte em exportador de mão de obra, frustra as esperanças da juventude e possibilita o discurso de que “tudo está bem e será melhor no próximo ano”. O país é imbuído de que é ótimo ser o 14º colocado em crescimento na América do Sul – média inferior à da África – e praticar a 31ª pior colocação em 31 países que avaliaram comparativamente a educação básica. O presidente Meirelles garante esse resultado. Wall Street pode ficar tranquila: os bancos e mercado de capitais brasileiros estão elaborando o Plano Ômega para melhorar seu desempenho.
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