Há dois anos, o National Intelligence Council (NIC) dos EUA publicou o relatório "Tendências Globais 2025", incluindo cenário no qual o Brasil atua como mediador em situações de crise no Oriente Médio e na Ásia para "ajudar a reconstituir o tecido internacional", num desempenho diplomático "que os EUA não podiam igualar naquelas circunstâncias". A realidade chegou antes do que imaginava o centro de estudos dos serviços de inteligência americano. O Brasil e a Turquia, ao negociarem no Irã acordo sobre a questão nuclear, irromperam no clube dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, espécie de diretório político do planeta, e escancararam as insuficiências da velha governança mundial, nascida após a Segunda Guerra.
O Brasil é um ator incontornável nas negociações comerciais e de combate à mudança climática, por exemplo. O país não é suficiente para fechar um acordo, mas sem ele tampouco há decisão. Na parte política, sua influência é mais limitada. É o único dos Bric que não tem poder nuclear, por exemplo, e é obrigado a jogar com o "soft power", o poder que nasce do exemplo, da liderança moral e cultural.
O acordo com Teerã despertou a atenção internacional por ser a primeira vez que atores médios têm ação em tema estratégico, de proliferação nuclear. Não produziu todo o efeito, como ficou claro na reação dos EUA. Mas foi recebido na Europa, pelo menos, como o primeiro ensaio da nova época que será este século, na avaliação de Thierry de Montbrial, diretor do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri). Ou como a "prefiguração do fim do monopólio político das grandes potências", conforme outro analista, Bernard Guetta.
Reuters
"A crise econômica foi um divisor de águas da história e vemos com clareza que o mundo está se configurando de maneira diferente", observa Felipe González, ex-presidente espanhol
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu uma visibilidade maior à política externa por seu carisma e sua história pessoal. A descoberta do pré-sal aumentou a importância econômica e estratégica do país, assim como a aceleração do crescimento econômico, o impacto limitado da crise financeira, a redução da pobreza e da desigualdade. O Brasil é um dos celeiros alimentares do mundo, tem uma das últimas fronteiras agrícolas inexploradas e boa parte das reservas de água doce do planeta.
Apoiado em tudo isso, Lula recusa que novos atores na cena global sejam considerados "intrusos" pelo "clube" baseado na geopolítica de 1945, quando Roosevelt, Stalin e Churchill decidiam o destino do mundo em torno de "uma garrafa de uísque".
"Brasil, China, Índia vão ter um papel diplomático mais e mais importante e se envolver em questões extremamente sensíveis nas quais as grandes potências fracassaram, e as consequências disso serão consideráveis em 10 ou 15 anos", diz Montbrial.
"O longo período de dominação ocidental, encorajada e acelerada pelos próprios erros e comportamento irresponsável, está acabando", diz Dominique Moisi, de Harvard
Ele vê o risco de antigas fraturas Leste-Oeste e Norte-Sul serem substituídas progressivamente por uma nova fratura, apenas perceptível, entre um Oeste mais e mais defensivo e países emergentes como o Brasil e a China reivindicando seu espaço na governança global. "Estamos engajados numa corrida contra o relógio", afirma. "Na falta de uma governança adequada, a mundialização irá diretamente contra o muro."
A governança global emergiu progressivamente a partir dos entendimentos restritos no Congresso de Viena (em 1815, que redesenhou o mapa político da Europa depois da derrota da França napoleônica); em Paris (em 1856, com os princípios do direito marítimo); Berlim (em 1884, com a partilha imperial da África e outras disposições colonialistas); Versalhes (em 1919, imposição de reparações à Alemanha e criação de novos Estados na Europa); e a conferência de San Francisco (em 1945, que criou a ONU).
A "boa notícia", afirma Lamy, diretor-geral da OMC, é que a pior crise econômica e financeira dos últimos tempos acelera a nova arquitetura da governança global
Como diz o diplomata e sociólogo Paulo Roberto de Almeida, o conceito de governança (e não governo) global tem a ver com a gestão partilhada de problemas comuns, como segurança e estabilidade (o controle de Estados belicosos e de movimentos terroristas), com o crescimento sustentado de países pobres (Estados falidos podem exportar a sua miséria) e com a preservação ambiental (desequilíbrios provocados pelo homem têm impacto profundo no futuro das sociedades). As crises resultantes da má gestão financeira também podem ter efeitos globais desastrosos, como a iniciada nos EUA em 2008, que afetou o mundo todo.
Na prática, porém, as autoridades nacionais cuidam dos próprios problemas e adotam políticas que empurram as crises para os demais. "É o que ocorre com práticas como o protecionismo dos ricos, a recusa de ceder espaço a novos competidores, a incapacidade ou a falta de vontade de empreender ações corretivas nos planos ambiental, criminal (tráfico de drogas ou de pessoas, por exemplo) e em outras áreas com possível impacto extrafronteiras", diz Almeida.
Analistas concordam que grandes reformas da governança mundial só ocorrem mesmo como resultado de guerras globais ou outras grandes turbulências culturais ou desastres humanos. A agenda internacional está pesada, pelos fracassos da negociação comercial conhecida como Rodada Doha, pelo impasse no acordo do clima, pela ausência de progressos práticos no G-20 financeiro. Tudo isso reflete a mediocridade das lideranças políticas com intensos lobbies internos que impedem reformas. E não apenas na Europa. Quanto ao Brasil, dizem que seus problemas não têm a ver essencialmente com o sistema internacional, todos são "made in Brazil".
A "boa notícia", afirma Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), é que a pior crise econômica e financeira dos últimos tempos acelera a nova arquitetura da governança global, na qual ele vê um "triângulo de coerência". De um lado, o G-20, grupo das 20 maiores nações representando mais de 80% da produção mundial, dá a liderança política. De outro, as organizações internacionais fornecem a especialização, negociam as regras, políticas ou programas. E o terceiro lado do triângulo é a ONU, como foro para "accountability" - prestar contas pelo que cada um faz.
No longo prazo, tanto o G-20, que se torna uma espécie de diretório econômico do planeta, como as agências internacionais, vão reportar-se ao "parlamento" das Nações Unidas. Já a reforma do Conselho de Segurança da ONU continua no impasse. A França, sem peso decisivo, acena com nova proposta, prevendo a criação de um status intermediário entre membros permanentes e não permanentes, com os novos membros sendo designados por dez anos sem direito de veto.
"A crise econômica foi um divisor de águas da história e vemos com clareza que o mundo está se configurando de maneira diferente", observa Felipe González, ex-presidente espanhol. Dominique Moisi, professor visitante da Universidade de Harvard, completa: "O longo período de dominação ocidental, encorajada e acelerada pelos próprios erros e comportamento irresponsável, está acabando".
Para Alfredo Valladão, professor do Instituto de Ciência Política de Paris, a força dos emergentes vem da globalização, da fragmentação das cadeias produtivas, de um sistema financeiro que deu crédito barato e abundante para investir em todo lugar. Nota que os EUA e a União Europeia (UE) representam dois terços do consumo final mundial e sem esse consumo e sem crédito "não tem desenvolvimento na China nem em lugar nenhum".
O Deutsche Bank estima que as economias emergentes poderão ter um crescimento acumulado de 30% até 2012, comparado a apenas 5% nos países desenvolvidos - o que vai se refletir na relação de forças.
Na média, as economias emergentes poderão crescer 4% a mais por ano do que as economias industrializadas nos próximos três a cinco anos, conforme o estudo intitulado "O Novo Mundo", assinado pela economista Maria Laura Lanzeni.
Os emergentes representarão 40% da produção mundial dentro de três anos, num salto enorme em comparação aos 25% de 2005. Segundo o Fórum Mundial de Economia, a desintegração da União Soviética, o despertar da China como usina do mundo e financiadora dos déficits americanos e as reformas econômicas na Índia representaram a inclusão de 1 bilhão de pessoas na força global de trabalho. O comércio mundial triplicou e cresce duas vezes mais que a produção, com os países em desenvolvimento representando 38% em comparação aos 23% de há 20 anos.
Como resultado do rápido crescimento e integração, as economias emergentes incluíram 400 milhões de consumidores de classe média na economia mundial. O aumento é de 70 milhões por ano, dos quais 20 milhões fora da China e Índia.
O mercado de capitais se globalizou. A média diária de transações cambiais supera US$ 4 trilhões por dia. As sociedades estão mais interconectadas pelo avanço tecnológico. O custo de três minutos de ligação telefônica dos EUA para a França caiu de US$ 4,14 em 1988 para US$ 0,06. A internet é utilizada por um quarto da população mundial de 6,7 bilhões de pessoas. Brasil, Rússia, Índia e China sozinhos têm mais de 1,3 bilhão de utilizadores de telefones celulares.
Para Valladão, Brasil, China e Índia querem ter o status de potência, mas sem aceitar a responsabilidade. "Como dependem da globalização, têm que defender a globalização. A maioria acha que está ótimo. Quem está com medo da globalização são os europeus. Mas têm que assumir responsabilidade para continuar. É aí que ficam com medo, porque se assumem responsabilidade perdem soberania."
"É fundamental fazer a diferença sobre o que era potência emergente no fim do século XIX e XX, quando na Alemanha e nos próprios EUA o poder econômico era nacional e controlado pelos governos nacionais", afirma. "Os países emergiam contra os outros ou paralelamente aos outros. Hoje, os que estão emergindo estão dentro de um sistema globalizado, dependem dos outros, não vão contra os outros. Podem até pensar que querem ir. Como estão emergindo agora, querem ser vistos como multipolares. Só que, para ser considerados assim, têm que defender esse sistema."
Já os EUA, que fazem metade das despesas militares do mundo, querem continuar a ser "o sistema". Mas seu papel de estabilizador final é posto em dúvida: o xerife é relutante e o mundo tem suspeitas. Barack Obama procura exercer nova liderança, mas quem decide mesmo é o Congresso. E este reflete o grande temor americano com perda de competitividade, queda de produtividade, transformação de economia industrial em economia de serviços. O lento declínio é doloroso. As figuras centristas do Congresso estão desaparecendo, dando lugar a parlamentares radicais e histriônicos que defendem posições particulares e ignoram soluções globais.
Ou seja, quando mais se precisa da potência para posições globais, os EUA estão cada vez mais locais. Os EUA e a UE sabem que têm que deixar espaço para os emergentes. Mas isso é menos doloroso para os europeus, que, a cada vez que se reúnem, têm de buscar compromissos. Já a administração Obama fala em multilateralismo, mas "desde que Washington convoque, distribua os papéis, decida", como nota o embaixador Rubens Ricupero. "Quando chega o momento em que o Brasil acha que pode evoluir nesse processo, os EUA não aceitam. Mas eles [EUA] estão num beco sem saída."
A China já tem comportamento de potência, considerando os grupos e foros internacionais apenas instrumento. Quer se aproveitar de uma soberania substancial. A Índia está mais focada no regional, com seu status nuclear consolidado pelo pacto com os EUA.
Para outros analistas, Brasil, China e Índia se movem pelos mesmos critérios que se moviam os EUA e a UE, e não se pode esperar que sejam mais generosos do que foram as potências. Negociadores europeus dizem que, no G-20 financeiro, o Brasil sempre busca um maneira de encontrar solução. O país também assumiu responsabilidades no Haiti, comandando as operações de paz da ONU. E, quando assume responsabilidade, assume riscos. O que não pode é achar que não vai ser cobrado e dar trombadas, diz um experiente diplomata. Referindo-se à fricção com os EUA sobre o Irã, alerta que, quando se dá uma trombada, é preciso preparar-se para receber outra de volta no jogo duro das relações internacionais.
Além disso, nota Valladão, quando se sai pelo mundo, "é ingenuidade" achar que só vale a realpolitik e os valores não devem entrar nas relações internacionais. Ou seja, valores são também influentes em definir os interesses políticos. Estes não são definidos no vazio, estejamos ou não cientes disso.
Outro ponto é consolidar sua potência regional. Anthony Pereira, diretor do Instituto Brasil do King's College, da Universidade de Londres, fez uma palestra no Instituto Real de Defesa, da Inglaterra, em meio a certo ceticismo sobre o acordo do Brasil e Irã e indagações sobre a falta de mediação brasileira em algumas tensões sul-americanas, como entre Venezuela e Colômbia ou Argentina e Uruguai. O incontestável, em todo caso, é que na conjuntura atual o Brasil só tem a avançar seu papel na cena internacional "com as cobranças para assumir mais responsabilidades".
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