João Carlos Bona Garcia, um ex-militante da esquerda armada que virou juiz do tribunal militar, afirma que, a exemplo do Chile e da Argentina, as Forças Armadas devem prestar contas do passado
“Claro que valeu a pena”. Assim João Carlos Bona Garcia responde à última pergunta feita no filme que narra sua vida e que, na tela do cinema, ficou sem resposta. Universitário de classe média que pegou em armas por um Brasil socialista, assaltante de carros forte que virou diretor de banco e ex-guerrilheiro que se tornou juiz de um Tribunal Militar são alguns antagonismos que parecem ficção, mas representam o puro retrato da vida de Bona, cuja trajetória política é contada “Em Teu Nome”, de Paulo Nascimento, em cartaz em todo País desde a sexta-feira 28.
Nascido no interior do Rio Grande do Sul, Bona militou na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) após o golpe de 1964. Depois de participar de ações armadas, ser preso pelo Departamento de Ordem Política e Social e testemunhar as crueldades nos porões, foi banido para o Chile, em 1971, e trocado com outros 69 presos políticos pelo embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Do Chile, rodou por Argentina, Argélia e França. Nessa entrevista, Bona fala do que reviveu com o filme, confirma uma traição que custou a vida quadros da VPR, entre eles o líder Onofre Pinto, e comenta o parecer do Supremo Tribunal Federal sobre o alcance da Lei da Anistia: “Não vai condenar ninguém. O pessoal daquela época já está de pijama”.
CartaCapital: O filme termina com uma pergunta que o personagem Boni, que representa o senhor, não responde. Valeu a pena toda essa trajetória de luta contra a ditadura?
Bona Garcia: É claro que valeu a pena. Se eu pudesse voltar no tempo, com a cabeça que eu tinha na época, com a vontade de transformar a sociedade, buscado a liberdade e um mundo mais socialista, é claro que eu faria tudo de novo. Era o meio que tínhamos para fazer isso. Não optamos pela luta armada, nos empurraram para ela. Não tínhamos outro caminho a seguir.
CC: Ao ver a atuação do ator Marcos Paulo no filme, que interpretou o chefe do Dops gaúcho, delegado Pedro Seelig, conhecido como “Fleury dos Pampas”, não brota no senhor um sentimento de falta de Justiça?
BG: Claro que sim. Mas, como disse no final do filme, se me perguntarem se eu mudaria de calçada ao ver um torturador hoje em dia, eu digo que não. Apesar de achar que os torturadores são pessoas com patologias sérias, acredito que chega um determinado momento em que eles devem fazer uma revisão de seus atos e se sentirem envergonhados. Acho que eles estão purgando todo esse período.
CC: Não é uma ironia um “ex-expropriador” virar diretor de um banco estatal?
BG: Claro que sim. Na época em que assumi a diretoria do Banrisul (1996) isso foi muito questionado. Mas prova que houve Anistia, nós voltamos e somos cidadãos de plenos direitos. Eu tenho um lado técnico. Estudei Economia (na Universidade de Sorbonne, durante o exílio na França) e aprendi o funcionamento de um banco. Assumi o cargo e também acabei sendo eleito presidente do sindicato dos bancos do Rio Grande do Sul. Mas sempre levei as coisas de uma maneira muito clara. Nunca escondi nem abri mão do meu passado e sempre tive orgulho dele. Quando ingressei no Tribunal Militar, por exemplo, tive que derrubar mandado de segurança, porque não queriam que eu assumisse. Mas depois, com o tempo, tudo acabou bem.
CC: Como um ex-guerrilheiro acabou se tornando um juiz do Tribunal Militar?
BG: É o primeiro e único caso no Brasil, e acho que permanecerá sendo o único. Em 1998, fui convidado pelo então governador Antonio Britto e acabei nomeado como juiz do Tribunal Militar. Para mim foi uma surpresa, mas pensei: “é uma instituição pública e estamos em uma democracia. Por que não assumir?”. Foi uma experiência maravilhosa, em que aprendi e ensinei muito.
CC: O senhor é uma testemunha histórica de um fato marcante nos anos de chumbo, a suposta entrega de guerrilheiros aos militares pelo sargento Alberi Vieira dos Santos, um dos homens de Leonel Brizola em 1961. O sargento Alberi realmente mudou de lado?
BG: Acho que sim. Ele me procurou na Argentina, em 1974, tentando fazer de tudo para me dar documentos para eu voltar ao Brasil. Não gostei. Senti que tinha algo errado. Marcamos um encontro no centro de Buenos Aires e vi que era uma armadilha. Nesse momento surgiu a idéia de eu sair de lá. Com o auxílio do (ex-governador de Pernambuco e dirigente do Partido Socialista Brasileiro) Miguel Arraes, cheguei até a Argélia. As pessoas que saíram da Argentina com o Alberi foram todas mortas. Eram do grupo do Onofre Pinto, da VPR, que também acabou morto. Não tenho dúvida de que o Alberi era um agente. E acabou morto. O que, para mim, foi queima de arquivo.
CC: Qual sua opinião sobre a revisão do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos?
BG: Acho que não há problema nenhum em abrir e efetivar a Comissão da Verdade. Inclusive citar os nomes de quem participou dessas atrocidades. O presidente Lula faz um pouco como fez Getúlio Vargas, que contrabalançava as pressões. Às vezes a balança pendia para um lado, e pela forte reação do outro, que estava em cima, a balança voltava a pender. Acredito que as instituições possuem a obrigação de abrir os arquivos. O povo tem direito à sua memória, a conhecer toda a sua história e o seu passado. Isso foi tolhido.
CC: Como um dos responsáveis pelo comitê da Anistia na França, em 1977, o que o senhor achou da recente decisão do Supremo que manteve a lei intacta?
BG: Fui muito grato à Lei da Anistia porque, por causa dela, voltei ao Brasil. Mas essa discussão que chegou ao Supremo Tribunal Federal, do ponto de vista jurídico, não podemos contestar o seu parecer, o qual diz que a Anistia foi ampla, geral e irrestrita, pegando todo mundo. Mas acho que, para o País virar essa página tão triste e sofrida, a lei teria que ser revista.
CC: A revisão da lei botaria alguém na cadeia?
BG: Isso não vai condenar ninguém. O pessoal daquela época já está de pijama, são pessoas de mais idade. Mas seria importante para as próprias Forças Armadas e para as polícias civis e militares rever suas participações e assumirem suas parcelas de erros para que o Brasil possa seguir adiante. As Forças Armadas, que eu sempre defendi, são uma instituição que prestou serviços relevantes ao País desde o seu início, mas que tropeçou em determinados momentos, cometendo crimes em nome do Estado. Seria mais tranqüilo assumirem seus erros, assim como a Argentina e o Chile fizeram e o Uruguai está fazendo. Por que nós aqui sempre escamoteamos?
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