terça-feira, 29 de julho de 2008

Barack Obama e o possível fim da política do medo - por Idelber Avelar (Fórum)

O fenômeno Barack Obama deixou atônita a liderança do Partido Democrata, surpreendeu a favorita Hillary Clinton e fez proliferar um sem-fim de clichês. Da infeliz declaração de Caetano Veloso – “prefiro Obama a Hillary porque gosto mais de preto que de mulher” – à irresponsável previsão de um assassinato por Doris Lessing, sua condição de primeiro candidato negro à presidência tem funcionado como uma metonímia à qual tudo deveria ser redutível. O simplismo se exarcerbou pelo fato de que as primárias democratas foram disputadas entre ele e a primeira mulher em condições de aspirar à Casa Branca. Sexismo e racismo – elementos muito presentes na sociedade estadunidense – passaram a ser chaves explicativas mágicas. É de magnitude inegável e merecedor de análise o fato de o Partido Democrata ter ungido um negro como seu candidato. Mas para se entender a dimensão do movimento Obama, há que se começar por outro lado.


A vitória de Obama representa o declínio da política consagrada no Partido Democrata pela dinastia Clinton. Depois de surrados durante década e meia pelos republicanos, os democratas nos acostumamos a ver a ascensão de Bill Clinton em 1992 como prova de que nossa viabilidade eleitoral dependia da estratégia clintoniana de apropriação de bandeiras Republicanas como o rigor fiscal, a “transição da ajuda social para o trabalho”, a ênfase na segurança e a política externa agressiva. Junte-se as táticas violentas de corpo-a-corpo contra os adversários, a sanha controladora sobre jornalistas e um populismo simbólico, baseado no carisma e na inteligência de Bill Clinton, e você terá os componentes do sucesso do primeiro democrata a cumprir dois mandatos presidenciais desde Roosevelt.


Um elemento importante foi a profissionalização das campanhas eleitorais, que passaram a ser focadas em certos grupos. Ficou famosa a expressão soccer mom, cunhada por Mark Penn, conselheiro da campanha de Clinton em 1996. As “mamães do futebol” seriam aquelas que levam as filhas para a prática de um esporte que é, nos EUA, com a exceção da população latina, praticado pela classe média alta. Para essas senhoras, a questão da segurança seria decisiva e a isso havia que responder. Embora a devastação planetária dos anos Bush tenha criado a sensação de que a administração Clinton foi um paraíso, seus dois mandatos foram marcados por uma série de traições a negros, sindicalistas, feministas, gays/lésbicas e ambientalistas, parceiros fracos, sem opções à esquerda, que foram sendo rifados para que o Partido Democrata pudesse ocupar o centro do espectro político sem questionar o movimento da sociedade rumo à direita. Essa política foi vitoriosa nas eleições presidenciais dos anos 90, mas deixou um desastre no Congresso e nas eleições estaduais. Com os Clinton na Casa Branca, o Partido Democrata passou de 30 governadores em 1992 a 18 em 2000, de 258 deputados em 1992 a 212 oito anos depois.


Pior que as derrotas legislativas foi o etos que essa estratégia instalou no Partido Democrata. Ao sermos acusados pelos republicanos de “tolerantes” com o crime, a resposta deixou de ser o desmascaramento do palavrório do pânico. Havia que se adotar a retórica da punição, com diferenças cosméticas em relação à direita. Ao sermos acusados de encorajar a “preguiça” dos que vivem do sistema de ajuda social, tínhamos que deixar a crítica das alusões racistas presentes nesse discurso, abandonar a demonstração de que o déficit do estado não vinha dali e embarcar na construção de bodes expiatórios. E assim por diante em questões de política externa, direitos dos imigrantes, equilíbrio fiscal. Nesse sentido, os anos Clinton foram um pesadelo para a esquerda. O “nosso” candidato havia chegado ao poder, mas só éramos convocados na hora de defendê-lo dos implacáveis ataques da extrema-direita, que chegaram ao seu auge do impeachment, como sabemos, por causa de alguns boquetes consensuais com uma estagiária maior de idade. A esquerda estava impedida de ter qualquer participação real na formulação do programa de governo, já que a prioridade havia passado a ser a captura de um centro político que se movia velozmente para a direita. É o que se convencionou chamar de “triangulação”, termo que em português brasileiro traz inconfundíveis tons positivos e futebolísticos, mas que em inglês norte-americano designa essa perene disposição de dizer o que a maioria entorpecida quer ouvir.


O mérito pessoal de Barack Obama é ter percebido que a triangulação era uma política do medo, na qual o Partido Democrata estava fadado a ser derrotado. Obama é o herdeiro da grande mobilização de base que alavancou a pré-candidatura de Howard Dean em 2004. Dean terminou preterido nas primárias pelo moderado John Kerry (que conseguiria perder a eleição mais ganha da história), mas o saldo da campanha foi uma rede de ativistas de base, organizados via internet e dispostos a influir nos rumos do partido. Mais importante, ela rendeu a eleição de Dean para a liderança do DNC, o Comitê Nacional Democrata. Um dos traços dessa rede é a percepção de que nos últimos anos o pêndulo americano voltou a se mover na direção da esquerda e que a política da triangulação não tinha mais nenhum sentido, se é que o teve algum dia. Essa militância de base não abraçou a candidatura de Obama imediatamente, dividindo-se entre candidatos como Dennis Kucinich (deputado de Ohio, o único que realmente poderia ser caracterizado como de esquerda) ou John Edwards (ex-senador da Carolina do Norte, conhecido por sua atuação como advogado trabalhista temido pelas grandes corporações). Quando ficou claro que a disputa se reduziria a Obama e à candidata do establishment, Hillary Clinton, o setor mais à esquerda do partido começou a unir forças em torno do senador de Illinois. Sua resposta, tanto na substância de sua política como em termos organizativos, foi superior às expectativas mais otimistas.


É importante não superestimar o fenômeno Obama. Mesmo todo o seu carisma e poder organizativo não teriam sido suficientes para vencer a máquina clintoniana se não fosse pela sucessão de trapalhadas em que consistiu a campanha de Hillary Clinton. Claramente operando num universo pré-internet e apoiando-se na estratégia de segmentação do eleitorado, que havia dado certo nos anos 90, Hillary confiou na aura de “inevitável”, slogan com o qual sua candidatura trabalhou ao longo de 2007.


A inevitabilidade era a face atual da Realpolitik a que os Clintons já haviam aderido uma década atrás. A mensagem das entrelinhas era essencialmente conservadora: conformem-se, pois Hillary Clinton é a única candidata que tem chances e dinheiro para derrotar a máquina Republicana. A arrecadação de fundos da campanha Clinton contrastava fortemente com a de Obama: enquanto este mobilizava milhões de indivíduos que iam doando aos poucos, longe do limite de 2.300 dólares, a campanha de Clinton dependia de grandes doadores e lobistas, que tendem a contribuir com o máximo de uma vez, para depois cobrar a conta em forma de favores e influência. As sucessivas declarações de Hillary, ao longo de 2007, de que a parada já estaria decidida no dia 5 de fevereiro – a chamada “Super Terça”, em que 24 estados realizam as suas primárias --, não eram uma simples demonstração de arrogância. Eram a expressão de um cálculo financeiro da campanha. No momento em que Barack Obama venceu a primeira primária, a de Iowa, um estado 95% branco, as diferenças de organização e de método de arrecadação já haviam ficado nítidas.


Apesar da recuperação em New Hampshire, a falta de estratégia de longo prazo seria determinante para a derrota de Clinton, não sem que antes seus marqueteiros e chefes de campanha protagonizassem espetáculos grotescos de falta de compreensão da nova realidade política e tecnológica, e a própria candidata se perdesse numa campanha negativa, marcada pela incoerência.


O carisma e o poder retórico de Obama terminaram contribuindo, paradoxalmente, para que se criasse a imagem de um candidato de propostas “vagas”, cujo perfil político “ninguém conhece”. A caracterização não resiste à análise do minucioso programa de governo apresentado por ele. Incontáveis veículos de mídia repetiram, por exemplo, a cantilena de que “ninguém sabe o que Obama fez no Senado”. Poucas coisas são tão irritantes para um pesquisador como a afirmação de que “ninguém sabe” alguma coisa que só não é sabida por quem ainda não tomou o trabalho de investigar. A trajetória de Obama no Senado de Illinois e no Senado Federal revela um legislador que raramente apresenta projetos bombásticos, mas que trabalha num notável nível de minúcia em leis pontuais de clara relevância.
Obama é o autor de 1) uma lei que regulamenta o financimento e os procedimentos para a eliminação de armas nucleares e convencionais; 2) uma lei que especifica punições para fraudes eleitorais e intimidação de eleitores, problema crônico nos EUA, especialmente nas regiões pobres e negras; 3) legislação que cria uma comissão para fiscalizar a ética no Congresso, com amplos atributos para investigar e punir subornos ou atividades ilegais de lobistas; 4) uma lei que, pela primeira vez, dirigiu a atenção do Senado para a gripe aviária e balizou a pesquisa e o combate a ela; 5) uma lei que regulamentou os planos de saúde para veteranos de guerra, incluído o tratamento dos distúrbios pós-traumáticos; 6) legislação que regulamenta e melhora as condições para testes genéticos, muito elogiada por especialistas; 7) legislação que proíbe a FEMA (agência encarregada das emergências) de contratar empresas sem licitação, prática escandalosamente comum, de New Orleans a Bagdá; 8) importantíssima legislação que cria um banco de dados público, na internet, com os gastos do governo federal; 9) uma lei que estabelece novos padrões para a economia de combustível; 10) uma lei – também elogiada por especialistas – que regulamenta os processos judiciais contra médicos e hospitais, sem tirar os direitos dos pacientes vítimas de abuso real; 11) legislação que criou o fundo de assistência às vítimas do furacão Katrina; 12) legislação que regulamenta os gastos de governantes com viagens; 13) uma lei que limita severamente a atividade de lobistas no Congresso; 14) uma lei que proíbe e regulamenta a punição por práticas enganosas nas eleições federais; 15) legislação que aumenta a segurança das indústrias químicas; 16) uma lei que torna ilegal a venda de dados pessoais por companhias que preparam imposto de renda; 17) um adendo intitulado Iraq War De-Escalation Act, que reduz o número de tropas e estabelece prazos para a saída dos americanos do Iraque. Eis aí uma pequena parte do currículo do Senador cuja política “ninguém conhece”.


Sem dúvida, o grande capital político trazido por Obama para a campanha foi o corajoso discurso feito às vésperas da invasão ao Iraque, quando a maioria das lideranças democratas embarcava no belicismo de Bush, mais uma vez com medo de ser prejudicada eleitoralmente com o rótulo de “suave com os terroristas”. Num momento em que mais de 70% da população americana apoiava a guerra, Obama expressou o ponto de vista dominante no resto do planeta: a guerra era imoral e injustificada. Se há algo promissor na campanha de Obama, é a reversão do paradigma discursivo que rege a arena política americana desde, pelo menos, a vitória de Reagan. Ao receber a acusação de “fraco”, “suave” ou não comprometido com a segurança, Obama não reage como tipicamente tem sido o caso com os democratas, movendo-se paulatinamente para a direita na tentativa (sempre frustrada, claro) de neutralizar a crítica Republicana. A estratégia de Obama tem sido exatamente a inversa: reafirmar o dito e desmontar a retórica do medo. Não se trata, nem de longe, de uma candidatura genuinamente de esquerda. Mas os sinais encorajadores vêm desse deslocamento que ela impõe aos termos dominantes do debate político. Se, três anos atrás, você dissesse que um candidato negro ganharia a indicação do Partido Democrata afirmando que há que se normalizar as viagens a Cuba e sentar-se para conversar com qualquer líder estrangeiro, incluindo-se o do Irã, você seguramente seria taxado de louco. A candidatura Obama é a prova definitiva de que os limites do possível são sempre mais elásticos do que nos faria crer a doxa e a mídia.


As chances de Obama vencer esta eleição são muito boas, e ele está à frente do republicano John McCain por diferença que varia de 5 a 10 pontos nas pesquisas nacionais. Sim, os democratas deixaram que a eleição de 2000, realizada depois de uma presidência extremamente popular como a de Clinton, fosse apertada o suficiente para que uma fraude na Flórida garantisse uma vitória Republicana. Em 2004, depois de quatro anos de uma presidência Republicana desastrosa e catatônica, os democratas de novo permitiram que um líder condecorado como John Kerry fosse pintado como um patinho feio afeminado e perdesse a eleição. Nada na história recente americana nos autoriza o otimismo exagerado. Mas a indicação de Obama também significa o triunfo de uma nova estratégia no Partido Democrata – o que Howard Dean chama de 50-state strategy, ou seja, o fim do método clintoniano de jogar todas as fichas em alguns estados chave como Flórida e Ohio. Como se sabe, a eleição americana é, para todos os efeitos, indireta, já que o candidato vencedor em cada estado leva todos os votos correspondentes àquele estado no Colégio Eleitoral.


E a candidatura Obama já sinalizou que vai agressivamente buscar estados que votam republicano há décadas: Virgínia, Colorado e Carolina do Norte, por exemplo, eram favas contadas para a direita em eleições passadas e já não o são. McCain terá que dispender energia e recursos em lugares que os republicanos estão acostumados a dar como ganhos de antemão. Se, nas duas últimas eleições, a estratégia focalista de Mark Penn e cia. reduzia a eleição a basicamente três estados (Ohio, Flórida e Pensilvânia), a campanha de Obama ampliou o número de estados decisivos (swing states) para pelo menos onze, a maioria deles arrancados da coluna Republicana. Nada garante que a estratégia será bem-sucedida ou, no caso de sê-lo, que não passaremos num mandato Obama por algumas das mesmas decepções vividas nos anos 90 com Clinton. Mas só um cínico se recusaria a ver que há sinais inspiradores no horizonte. É imperativo para a esquerda participar deste movimento, apostar nele e tentar radicalizar seu potencial

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