Ronilda Noblat foi advogada de prisioneiros políticos na Bahia desde muito jovem. Morreu no domingo, 22 de junho, aos 67 anos. Algumas poucas dezenas de pessoas acompanharam seu sepultamento no dia 23, no cemitério Jardim da Saudade, em Salvador. Muitos dos que certamente gostariam de prestar-lhe a última homenagem estavam pelo interior da Bahia, onde se desenrola a maior festa da Bahia, o São João.
Falo como testemunha de um período e como amigo de Ronilda. É necessário resgatar com todo carinho o extraordinário papel dos advogados de prisioneiros políticos por todo o Brasil. Não vou navegar pela história do restante do País, mas quero dar duas ou três palavras sobre aqueles que, na Bahia, se dedicaram à defesa dos que caíam nas malhas repressivas da ditadura na Bahia. Fui provocado pela morte de Ronilda.
Nem todos os leitores sabem que estive preso por quase quatro anos na Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, entre 1970 e 1974. Nem necessariamente sabem que passei pela tortura – pau-de-arara, choque elétrico, afogamento – no Quartel do Barbalho, também em Salvador. Por isso digo que sou testemunha de um período em que o filho chorava e a mãe não via. E sei, bem, do papel que uma advogada como Ronilda tinha para nós, os que estávamos nas mãos dos torturadores ou sob a inquisição de juízes militares.
No sepultamento dela estavam presentes José Borba Pedreira Lapa e Inácio Gomes, também advogados nossos à época. Os dois, aliás, me defenderam. Inácio, num primeiro momento, me visitou no Quartel do Barbalho, logo após os dias de tortura, em dezembro de 1970. Ele conseguia manter algum nível de diálogo com os chamados militares nacionalistas no Exército. Ainda me alcançou com a calça segura por um barbante, sem camisa, estropiado. E, com isso, pode ter garantido minha vida porque até ali eu era um preso clandestino. Pedreira Lapa foi, depois, meu digno defensor até minha saída da prisão.
Os dois estavam muito emocionados. Viam partir uma companheira de batalhas. A mais nova dentre eles. Ronilda iniciou seu apostolado muito jovem – não será impróprio chamar a missão dela dessa maneira –, sob a inspiração do precursor de todos eles, Jaime Guimarães, já morto. Eram os três mosqueteiros: Jaime, Lapa, Inácio e Ronilda. É, porque os três mosqueteiros também eram quatro, não eram? Claro que surgiram outros advogados, mais jovens, mas eles eram os nossos grandes companheiros de luta.
Hoje, à distância, podemos considerar tão simples ser advogado de um preso político. Soa fria a afirmação se não a situamos historicamente. Ora, não é absolutamente natural um prisioneiro contar com um advogado? Ocorre, no entanto, que estávamos sob uma ditadura. E uma ditadura terrorista. Pós-AI-5. Ela prendia, seqüestrava, torturava, matava, fazia desaparecer pessoas. Não havia habeas-corpus, qualquer legalidade. Os generais eram donos da vida e da morte.
Não havia qualquer respeito à missão do advogado. Ronilda, Lapa, Jaime e Inácio afrontavam a ditadura na Bahia ao assumir a missão de defender os prisioneiros políticos, à época denominados subversivos ou terroristas pura e simplesmente. Nem a imprensa nos considerava ou nos chamava pela nossa real condição: presos políticos. Ela também assumia o discurso da ditadura.
A advogada Ronilda Noblat, como os demais, era o anjo que se dispunha a descer às catacumbas, às vezes juntar os cacos do que sobrava de cada um de nós, cuidar de nossas feridas, as do corpo e as da alma, levantar nosso ânimo.
E depois, subir à tribuna e enfrentar os juízes fardados, tentando atenuar, diminuir as nossas penas, quase sempre inevitáveis. Ronilda foi advogada de Theodomiro Romeiro dos Santos, o primeiro condenado à morte pela ditadura de 1964.
Depois, passo a passo, com a luta de Ronilda, Theo teve sua pena modificada para prisão perpétua, para 30 anos e no final a condenação reduziu-se para pouco mais de 16 anos. Conto a história de Theo no primeiro número da revista Caros Amigos, de 1997. Ronilda foi advogada dele e de tantos outros companheiros e companheiras.
Era carinhosa, solidária. E corajosa. Porque, como começava a dizer antes, naquela conjuntura era preciso muita coragem, um sentido de missão e muita consciência política para topar a parada de defender um prisioneiro, uma prisioneira política. O aparelho repressivo não gostava dos advogados. Considerava-os como adversários do regime, subversivos como seus clientes.
Quanto mais se o cliente fosse um assim considerado terrorista como Theo que, para tentar livrar-se da prisão, reagiu e matou um sargento da Aeronáutica que à paisana o prendeu. Como é que aquela jovem advogada se atrevia a defender aquele terrorista de 18 anos? É, Theo tinha apenas 18 anos. Um menino que amava a Revolução, o socialismo, o comunismo. Hoje é juiz do Trabalho em Recife.
Todos nós, os que enfrentamos tortura e cadeia por conta da luta contra a ditadura, temos uma dívida com os advogados e advogadas que por todo o País corajosamente nos defenderam. Lembro aqui, de passagem, de Idibal Piveta e Airton Soares, que me defenderam em São Paulo, onde respondi a dois processos.
Ainda não está devidamente registrado o papel dos advogados naquela conjuntura tão sombria do País. Ao assistir ao sepultamento de Ronilda, ao rever Pedreira Lapa e Inácio Gomes tão emocionados, pensei nisso. No quanto ainda falta de reconhecimento da luta deles, da coragem, dedicação, do carinho imenso que tiveram por todos nós. Ronilda, ao partir, como que nos lembra disso.
Por justiça, devemos afirmar que eles compartilharam conosco daquela luta. Foram os paladinos da defesa da lei numa terra sem lei. Da defesa da democracia num País sem democracia. Do respeito aos direitos humanos num Brasil em que os direitos humanos eram desrespeitados cotidianamente. A palavra era a arma deles. Uma palavra cheia de dignidade e coragem. Ronilda era tudo isso. Ela e os três mosqueteiros dignificaram a missão do advogado.
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