Cidade de Derry, Irlanda do Norte, maio de 1972. Richard Moore, de 10 anos, volta da escola ao lado de três colegas. Os meninos que passam correndo diante de um posto das forças britânicas fazem gestos desafiadores para os soldados. A corrida de Richard é interrompida quando alguém, a partir do posto, atira balas de borracha no rosto do jovem, que cai no chão.
Dias depois, no hospital, o diagnóstico: os tiros deixaram Richard cego. O fato revolta a comunidade, mas a família tenta manter a calma. Os pais o consolam. Falta-lhe, porém, coragem para contar a eles exatamente o que se passara. Richard imagina que tudo voltará à normalidade após lhe tirarem os curativos dos olhos.
O menino fica duas semanas internado. Pouco antes de sua saída, o irmão mais velho o leva para uma caminhada pelos jardins do hospital e, constrangido, informa-lhe sobre o futuro na escuridão. Nos dias subseqüentes, Richard volta à escola e tenta retomar a vida. Passam-se 36 anos. “Nunca ouvi meus pais falarem mal dos soldados responsáveis pelo fato”, conta Richard Moore, sentado na poltrona da sede da ONG Children in Crossfire (Crianças sob Fogo Cruzado), fundada por ele, em 1996, para oferecer apoio a menores vítimas de guerras em todo o mundo.
Hoje, Moore leva uma vida normal, dentro de suas limitações. Formou-se em Administração, casou-se e teve dois filhos. Na década de 1980, recebeu uma indenização do governo britânico. Com a metade do dinheiro comprou uma casa. Com a outra, um pub.
Após fundar a ONG, dedicou-se integralmente ao projeto de apoio às crianças mutiladas. Viajou pelo mundo arrecadando e distribuindo recursos. Mas uma idéia fixa o acompanhava havia mais de 30 anos: quem fora o soldado que atirara nele? Como seria ficar frente a frente com o algoz?
Não lhe restavam mágoas, mas ele sentia a necessidade de passar a limpo o fato que mudou sua vida. Após meses de procura, o soldado – identificado apenas como Charles – foi localizado na Escócia. Moore escreveu-lhe uma carta sobre sua vida ao longo das últimas três décadas. “Perguntei-lhe, sem ressentimentos, se ele se lembrava por que atirara em mim.”
Semanas depois, recebeu a resposta. Em tom frio, Charles justificava o ato em razão de estar cumprindo sua função como soldado da Grã-Bretanha. Não se sentia culpado. Reconhecia, porém, que, se soubesse das conseqüências, não teria atirado. Moore sentiu-se aliviado por ter recebido uma resposta de Charles. Na carta seguinte, pediu um encontro pessoal, que foi aceito. Semanas depois, dirigiu-se à Escócia.
A conversa durou quatro horas e meia. Sentados um diante do outro, relembraram os fatos e falaram de suas vidas. Charles demonstrou franqueza e abertura, mas voltou a justificar o ato e não falou em arrependimento. Moore ouviu seu discurso e buscou o momento adequado para expor o que estava atravessado em sua garganta havia anos: “Eu perdôo você”, disse-lhe. Ambos choraram.
“Perdoar é uma experiência fantástica. Foi a melhor coisa que fiz em minha vida”, garante o irlandês, acrescentando por que o gesto tirara um enorme peso de suas costas. “Imagine isto: a pessoa responsável por tanto sofrimento, que tanto prejudicara a mim e a minha família, estava sentada à minha frente, sentindo o meu perdão.”
Na verdade, explica, não apenas ele perdoava seu agressor. Seus pais também o faziam por meio dele: “Meus pais sofreram mais do que eu, tendo de conviver com um filho cego”.
A partir da visita à Escócia, houve uma grande empatia entre o algoz e a vítima e os encontros começaram a ser mais freqüentes, em Derry ou na Escócia. Atualmente, são como velhos amigos. Encontram-se ao menos duas vezes ao ano. Contam histórias, tomam cerveja e riem juntos. O programa preferido é passear. Quem vê ambos andando juntos, o cego segurando o braço do homem mais velho, recebendo orientação para caminhar pelas ruas e ouvindo atentamente a descrição daquilo que está ao seu redor, jamais conseguiria imaginar a maneira pela qual a parceria se formou. “Perdoar é um presente que a gente dá a si mesmo, independentemente de o outro aceitar”, insiste Moore.
A relação entre o soldado e o “garoto cego” se transformou em um símbolo do processo de reconciliação que vive a Irlanda do Norte. Contra todas as previsões, um ano depois do início da administração conjunta entre católicos e protestantes, é possível sentir que a paz será duradoura.
Em maio de 2007, o país, de 1,7 milhão de habitantes, testemunhou a instalação de um governo que conseguiu o aparentemente impossível: a união de dois grupos inimigos havia séculos e que se enfrentavam violentamente há 40 anos, o Exército Republicano Irlandês (IRA) e o Partido Unionista. Os primeiros lutavam pela união com a República da Irlanda, enquanto os outros queriam a manutenção do domínio britânico na região. Era a guerra secular entre católicos e protestantes, descendentes de irlandeses e de ingleses, respectivamente.
Um acordo de paz estabeleceu que protestantes e católicos deveriam governar juntos. O grupo vitorioso em uma votação democrática indicaria o primeiro-ministro, e o segundo colocado, o vice. Em março do ano passado, a população elegeu seus representantes para o Parlamento. Nas urnas, os protestantes tiveram 55% dos votos e os católicos, 45%. Assim, o pastor protestante Ian Paisley, de 82 anos, assumiu como primeiro-ministro, e o católico Martin McGuinness transformou-se em seu vice. Era o fim de quatro séculos de domínio exclusivo da Grã-Bretanha.
De forma inédita, dois inimigos ferrenhos começavam a governar o país. Paisley, um dos mais radicais defensores do extermínio da população católica irlandesa, administrava o governo juntamente com McGuinness, um dos fundadores do IRA, responsável pela morte de milhares de protestantes britânicos. Algo sem igual na história contemporânea. Era como se, na década passada, os territórios palestinos fossem governados por Ariel Sharon e Yasser Arafat juntos.
Ao contrário de Richard e Charles, Paisley e McGuinness não se sentam à mesma mesa e se limitam a trocar algumas palavras em eventos formais. Seus assessores fazem as negociações necessárias. É difícil esconder a repulsa mútua.
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