Se as ocupações e bloqueios localizados do MST já servem de pretexto para a imprensa conservadora e um punhado de procuradores gaúchos pretenderem declará-lo “organização criminosa”, que seria se bloqueasse os transportes e o abastecimento de alimentos e combustíveis por meses a fio, em todo o País?
Na Argentina, porém, a mesma atitude dá direito ao aplauso e apoio dos órgãos de análoga coloração ideológica, uma vez que parta da oligarquia latifundiária e dos barões do agronegócio. Já uma manifestação de apoio ao governo e a detenção (por ordem judicial, durante duas ou três horas) de um líder ruralista que liderava o bloqueio de uma importante estrada foram qualificadas pelos mesmos meios de ser “provocações”.
Dito isto, é preciso apontar o papel nessa crise das estruturas legadas pela história. O costume da mobilização popular (ou mesmo nem tão popular, como neste caso) e a legitimidade a ela atribuída ainda são vistos como aberrações no Brasil, mas fazem parte da herança positiva do peronismo. Este também legou, porém, o esvaziamento das instâncias de mediação, inclusive dos parlamentos. De presidentes de todas as tendências espera-se o papel de monarcas absolutos eleitos. A falta de espaço para o debate e negociação francos e racionais transforma em queda-de-braço as disputas não resolvidas nos bastidores e as leva às ruas em tom intransigente e histérico.
Colaboraram a dependência não superada da agricultura e a fragilidade do Estado, tanto para investir e promover um desenvolvimento mais equilibrado quanto para arrecadar segundo a capacidade real dos contribuintes.
O peronismo falhou na tentativa de pôr os proprietários rurais em seu lugar, reduzir a dependência do país e do Estado da agricultura e abrir caminho a um desenvolvimento mais equilibrado. O setor primário continua a absorver os investimentos e as preocupações do governo e este, em troca, e por sua fraqueza e incapacidade de implementar políticas diferenciadas conforme as necessidades e a capacidade dos produtores, o faz de vaca leiteira.
Outra parcela cabe ao imediatismo do governo Kirchner. Foi notavelmente bem-sucedido em tirar o país da pior de suas crises econômicas, mas concentrado em manter sua popularidade e ganhar a próxima eleição, deixou surgirem gargalos e desequilíbrios que alimentam uma inflação perigosa para depois disfarçá-la com maquiagem estatística.
Na falta de outros instrumentos, uma parte crescente, talvez até tecnicamente excessiva, do esforço para frear a inflação e evitar a falência dos argentinos passou a ser paga pela retenção das exportações de commodities. Mas não se deve perder de vista que a alta dos preços internacionais torna o aumento da carga suportável para a maioria dos agricultores e que se trata da legítima decisão de um governo democraticamente eleito.
Ao aceitar submeter sua política ao Congresso, o governo recuou, mas os agricultores e os meios que os apóiam negam-se a suspender o locaute e dizem agora que o debate só será legítimo se favorecer os ruralistas – e um deles diz que, em caso contrário, o Parlamento terá de ser dissolvido. É sinal de que não está em jogo apenas um porcentual de retenção. Não só o projeto político dos Kirchner como a própria democracia começam a ser ameaçados por disposições golpistas análogas às que escreveram as páginas mais terríveis da história do país.
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