Se você quer entender a política de um país, examine o mapa – recomendava Napoleão.
Quem queira adivinhar se Israel e/ou os EUA atacarão o Irã, deve examinar o mapa do Estreito de Hormuz entre o Irã e a Península Árabe.
Por ali, por um pedaço de mar de apenas 34 km de largura, passam os navios petroleiros que carregam entre 1/5 e 1/3 de todo o petróleo do mundo, inclusive o que sai do Irã, Iraque, Arábia Saudita, Kuwait, Qatar e Bahrain.
Raros, dos muitos que têm falado sobre o inevitável ataque americano e israelense ao Irã, consideram o que mostra o mapa desta região.
Fala-se sobre um ataque aéreo “limpo”, “cirúrgico”. Os potentíssimos jatos dos EUA decolarão de porta-aviões que já estão atracados no Golfo Persa e de bases norte-americanas espalhadas por toda a região e bombardearão todas as instalações nucleares do Irã – e nesta ocasião festiva também bombardearão prédios do governo, instalações militares, centros industriais e o que mais lhes dê na telha. Usarão bombas de profundidade, que penetram fundo, também, no chão.
Simples, rápido e elegante – uma revoada e adeus Irã, bye-bye aiatolás, bye-bye Ahmadinejad.
Se Israel atacar sozinho, a operação será mais modesta. O máximo que os agressores israelenses podem esperar é destruir as principais instalações nucleares e conseguir escafeder-se sãos e salvos.
Só tenho um pedido a fazer, pedido modesto: antes de começarem, olhem, por favor, mais uma vez, o mapa, no ponto onde está o Estreito que leva o nome (provavelmente), do deus de Zaratustra.
A primeira reação, inevitável, se o Irã for bombardeado, será o bloqueio do Estreito de Hormuz. Já seria suficientemente evidente, mesmo antes das explícitas declarações de um dos generais iranianos do mais alto escalão, há poucos dias.
O Irã controla o Estreito, em toda a extensão. Eles podem bloqueá-lo completamente, hermeticamente, com mísseis e artilharia de terra e naval.
Se acontecer, o preço do petróleo disparará – para bem além dos 200 dólares/barril, das estimativas mais pessimistas de hoje. Daí em diante, a reação será em cadeia: depressão mundial, colapso de todas as indústrias e explosão catastrófica do desemprego nos EUA, Europa e Japão.
Para evitar este perigo, os EUA terão de ocupar partes do Irã – talvez todo o território de um país muito extenso. Os EUA não têm nem uma pequena parte das forças de ocupação de que necessitarão. Praticamente todas as forças terrestres dos EUA já estão enleadas no Iraque e no Afeganistão.
A poderosa frota naval dos EUA ameaça o Irã – mas, no momento em que o Estreito for fechado, estará reduzida à situação daquelas miniaturas de navios que se compram em garrafas. Exatamente porque há este perigo, os comandantes da Marinha dos EUA retiraram do Golfo Persa, esta semana, o porta-aviões movido a energia nuclear, o “Abraham Lincoln”; alegaram que o deslocamento teria a ver com a situação no Paquistão.
Resta a possibilidade de os EUA usarem um “testa de ferro”. Israel ataca. Os EUA não são oficialmente envolvidos. E negarão qualquer responsabilidade.
Será? O Irã já anunciou que considerará qualquer ataque por Israel como operação norte-americana. E que responderá como se fosse atacado diretamente pelos EUA. Faz todo o sentido.
Nenhum governo israelense sequer cogitará de iniciar qualquer ataque ao Irã, se não houver acordo explícito e não-secreto com os EUA. Os EUA jamais farão tal acordo.
Então… o que significam tantas manchetes tão dramáticas em toda a mídia internacional?
A Força Aérea de Israel fez exercícios a 1.500 quilômetros do litoral de Israel. Os iranianos responderam com disparos-teste de seus mísseis Shihab, de igual alcance. Antigamente, estes movimentos eram chamados de “agitar os sabres”[1]; hoje, se fala de “guerra psicológica”. São úteis para políticos fracassados em crise de baixo prestígio interno, para assustar os cidadãos. E dão ótimas imagens de televisão. Mas o mais simples bom-senso ensina que quem planeje um ataque surpresa não sobe ao telhado, aos gritos, para avisar que atacará. Menachem Begin não encenou qualquer manobra aérea antes de mandar os bombardeiros para destruir o reator iraquiano. Nem Ehud Olmert discursou sobre sua intenção de bombardear um misterioso prédio na Síria.
DESDE o rei Ciro, o Grande, fundador do Império Persa há 2.500 anos, que permitiu que os israelitas exilados na Babilônia voltassem a Jerusalém e ali construíssem um templo, as relações entre israelenses e persas têm altos e baixos.
Até a revolução de Khomeini, houve firme aliança entre eles. Israel treinou a temida polícia secreta do Xá ("Savak"). O Xá era sócio do oleoduto Eilat-Ashkelon, projetado para ultrapassar o Canal de Suez. (O Irã ainda tenta receber o pagamento que lhe é devido pelo petróleo que forneceu.)
O Xá ajudou a infiltrar oficiais do exército de Israel nos territórios curdos do Iraque, onde colaboraram para a revolta comandada por Mustafa Barzani contra Saddam Hussein. Esta operação foi interrompida, quando o Xá traiu os curdos iraquianos e fez um acordo com Saddam. Mas a cooperação Israel-Irã foi praticamente recomposta, depois que Saddam atacou o Irã. Ao longo desta guerra longa e cruel (1980-1988), Israel apoiou secretamente o Irã dos aiatolás. O affair conhecido como “Irãgate” é só uma pequena parte desta história.
Nada disto impediu Ariel Sharon de planejar a conquista do Irã, como já denunciei várias vezes. Quando eu trabalhava num artigo mais extenso sobre ele, em 1981, depois de ele haver sido indicado ministro da Defesa, o próprio Sharon contou-me, confidencialmente, sobre esta idéia ameaçadora: depois da morte de Khomeini, Israel pegaria de surpresa a União Soviética, na corrida para o Irã. O exército israelense ocuparia o Irã em poucos dias e entregaria o país aos norte-americanos, muito mais lentos, que já teriam fornecido antes, a Israel, enormes quantidades de armamento sofisticado, expressamente para aquela invasão.
Sharon também me mostrou os mapas que planejava levar para exibir nas reuniões estratégicas anuais, em Washington. Eram impressionantes. Mas, pelo visto, não impressionaram muito os norte-americanos.
Tudo isto sugere fortemente que uma intervenção militar israelense no Irã nada tem de muito revolucionária. Mas, em todos os casos, a condição necessária sempre é uma íntima cooperação com os EUA. Portanto, nada acontecerá, porque os EUA seriam as primeiras vítimas das conseqüências.
O IRÃ é hoje uma potência regional. Não faz sentido negá-lo.
A ironia do caso é que os Iranianos muito têm a agradecer, por serem hoje uma potência regional, ao seu principal agente benemérito: George W. Bush. Fossem gratos, tivessem uma grama de gratidão, teriam de erigir uma estátua de Bush na praça central de Teerã.
Por muitas gerações, o Iraque foi a última fronteira antes do mundo árabe. Foi a muralha do mundo árabe, contra os persas xiitas. Ninguém esqueça que, durante a guerra Iraque-Irã, os árabes iraquianos xiitas combateram com muito entusiasmo contra os persas Iranianos xiitas.
Quando o presidente Bush invadiu o Iraque e destruiu o país, ele abriu toda a região ao poder crescente do Irã. Gerações futuras de historiadores ainda se espantarão muito com esta ação, que merece capítulo especial, só dela, numa “Marcha da Loucura” que se escreverá um dia.
Hoje já está suficientemente claro que o verdadeiro objetivo dos EUA (como já escrevi aqui, desde os primeiros artigos que escrevo) sempre foi tomar posse da região petrolífera do Mar Cáspio/Golfo Persa e ali, no centro, estabelecer uma base norte-americana permanente. Este objetivo já foi alcançado – os norte-americanos falam hoje em permanecer no Iraque “por cem anos”, e já tratam de fazer a partilha das imensas reservas de petróleo do Iraque entre as quatro ou cinco empresas “gigantes do petróleo” norte-americanas.
Mas esta guerra começou sem pensamento estratégico amplo; ninguém considerou o mapa geopolítico daquela região. Não se sabe ainda quem é, ali, o principal inimigo dos EUA. Não se sabe, sequer, onde concentrar a luta. A vantagem de dominar o Iraque será rapidamente perdida, se resultar, disto tudo, o nascimento do Irã como potência nuclear, militar e política, potência que lançará sua sombra sobre todos os aliados dos EUA no mundo árabe.
E ONDE fica Israel, neste jogo?
Por muitos anos, Israel tem sido bombardeada por propaganda que diz que o esforço nuclear dos Iranianos seria ameaça à existência de Israel. Esqueçam os palestinos. Esqueçam o Hamás. Esqueçam o Hezbollah. Esqueçam a Síria. O único perigo que ameaça a existência do Estado de Israel é a bomba nuclear iraniana.
Repito o que já disse várias vezes: não morro de medo da bomba iraniana. Claro: a vida é melhor sem bomba nuclear iraniana, e Ahmadinejad não é muito simpático. Mas, na pior das hipóteses, haverá um “equilíbrio do terror” entre duas nações, mais ou menos como houve terror equilibrado entre União Soviética e EUA – o equilíbrio que nos salvou de uma III Guerra Mundial. Também há equilíbrio do terror entre Índia e Paquistão – e, por isto, estes dois países que se odeiam visceralmente foram obrigados a reaproximar-se.
Tudo isto posto e considerado, atrevo-me a prever que não haverá ataque militar contra o Irã este ano. Nem os norte-americanos nem os israelenses atacarão o Irã.
Escrevo estas linhas e sinto acender-se uma luzinha vermelha na minha cabeça. É uma lembrança. Na juventude, fui leitor ávido dos artigos semanais de Vladimir Jabotinsky, que sempre me impressionaram pelo estilo claro e pela lógica gelada. Em agosto de 1939, Jabotinsky escreveu um artigo, no qual afirmava categoricamente que não haveria guerra, apesar dos muitos rumores que diziam o contrário. Raciocinava claramente: as armas modernas são tão terríveis, que nenhum país atrever-se-á a iniciar uma guerra.
Dias depois, a Alemanha invadiu a Polônia. E começou a mais terrível guerra que a humanidade conheceu (até hoje), que só terminou quando os EUA lançaram bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki. Desde então – são 63 anos – ninguém mais usou armamento atômico.
O presidente Bush chega ao fim da carreira, em desgraça. O mesmo destino espera, impaciente, por Ehud Olmert. Para políticos deste tipo, é fácil tentar uma última aventura. Tentar cavar um lugar na história, a qualquer custo. Podem ser decentes, é claro. E podem não ser.
Seja como for, mantenho o meu prognóstico: não invadirão o Irã.
* URI AVNERY, “Why not?”, 12/7/2008, na página do Gush Shalom [Grupo da Paz], na internet em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1215904313/
Tradução de Caia Fittipaldi. Reprodução por internet autorizada pelo autor e pela tradutora. Copyleft.
[1] Saber rattling, em inglês; ruido de sables, em espanhol. Refere-se a um incidente da história do Chile, em 3/9/1924, quando um grupo de jovens oficiais do Exército protestaram contra a inação dos deputados, agitando os sabres nas bainhas (em http://en.wikipedia.org/wiki/Saber-rattling) NT.
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