Ressalvadas as inegáveis qualidades dos profissionais que já ocuparam o posto de ouvidor da Folha de São Paulo, nenhum jamais levou a defesa dos leitores ao extremo de confrontar efetivamente o jornal, arrancando-lhe providências indesejadas. Ao contrário dos colegas das empresas não-jornalísticas, os da Folha parecem permanentemente temerosos de melindrar os patrões: edulcoram as denúncias mais constrangedoras, sopram com elogios as feridas abertas pelas raras críticas contundentes, privilegiam análises desprovidas de conteúdo político.
O jornal costuma tratar o cargo de ouvidor (que chama de “ombudsman” para europeizá-lo) como um trunfo propagandístico, espécie de atestado de sua pretensa modernidade. A simples existência da função garantiria uma aura de independência e imparcialidade ao veículo, protegendo seus consumidores do mau jornalismo e das enganações típicas do mercado.
Nesse aspecto, o ouvidor faz parte do logro. Não existe imprensa “livre” em estado absoluto, especialmente no suporte impresso, que atravessa dificuldades financeiras e depende da satisfação de seus anunciantes empresariais. E não parece honesto prometer uma isenção que ultrapassa as limitações humanas e, notoriamente, os interesses do próprio jornal. Ou alguém acredita que a Folha não defende suas preferências político-partidárias?
O fato inconfesso é que o jornal atravessa uma grave crise de credibilidade, acentuada crescentemente durante o primeiro governo Lula. Nos últimos seis anos, a Folha protagonizou alguns dos episódios mais vergonhosos da história do jornalismo nacional, pelos quais nunca se dignou a responder: as falsas acusações oriundas do dossiê Vedoin, a responsabilização do governo federal pelos acidentes aéreos, o silêncio diante dos escândalos dos governos Alckmin e Serra em São Paulo, o factóide do “dossiê” da Casa Civil. Em todas as ocasiões, os ouvidores fizeram pouca diferença.
Mário Magalhães foi esperto ao fugir do naufrágio, no início do mês passado. Em plena efervescência do episódio do tal “dossiê” (no qual a Folha compôs uma vergonhosa parceria com a famigerada revista Veja), a direção do jornal decidiu não mais divulgar na internet a crítica interna diária do ouvidor. A inacreditável justificativa para a decisão era de que “a crítica interna vinha sendo utilizada pela concorrência e instrumentalizada por jornalistas ligados ao governo federal”.
Reflitamos por um segundo acerca da pérola. “Instrumentalizada por jornalistas ligados ao governo federal”. Instrumentalizada. Uma afirmação dessas só faz sentido quando pressupomos alguma guerra sangrenta, desigual e suja em andamento. O inimigo pode utilizar valorosas informações contra nós, então lutamos para preservá-las no mais absoluto sigilo. Quem seria o inimigo, no caso? O governo federal. Quais seriam tais informações secretíssimas? As críticas suaves do profissional pago para criticar suavemente. Mas, convenhamos, a Folha precisa mesmo temer a rigidez analítica de alguns servidores públicos?
Tudo isso em plena vigência do Estado democrático de Direito. Eis o papel construtivo, desapegado e zeloso da Folha: fugir de "jornalistas ligados a", alimentar a hipocrisia e abafar a controvérsia para combater um governo reeleito, legitimamente empossado e aprovado pela esmagadora maioria da população.
O novo ouvidor, Carlos Eduardo Lins da Silva, chega para edulcorar, com seu currículo impecável, a falsidade do cargo. Uma pena. Nós, os leitores, estamos acostumados à superficialidade ritualística, aos comentários cheios de pruridos, à doçura corporativista do fiscal de costumes que existe apenas para medir as tangas do jornalismo mal-intencionado.
E não precisamos de intermediários para criticar a mídia. Já fomos devidamente "instrumentalizados", pela própria Folha, queira ela ou não.
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