Os fatos relatados abaixo são reais e revelam o grau de precariedade ainda vigente nas relações de consumo no Brasil. Demonstram, no genérico, a forma mais explícita de desrespeito adotada pelas operadoras de telefonia do país, e, no particular, a desastrosa estratégia de assédio bolada pela Brasil Telecom para tentar manter os muitos clientes que, em Brasília, fogem dela para empresas melhores, mais eficientes e mais corretas no trato com os usuários.
Quarta-feira, 28 de maio, 10h09. Do outro lado da linha, o serviço automático de atendimento da Brasil Telecom, o 10314. Aperto as teclas que me mandam para ser atendido. Antes de me remeterem ao inferno de quase uma hora ao lado de uma atendente diabólica, me pedem para, ao final, dar uma nota sobre a qualidade do atendimento. Será a minha vingança, mas, por ora, voltemos ao começo. Disco todos os números e espero, finalmente, que um ser humano me atenda do outro lado. Quero cancelar uma linha de telefone fixo. Antes, contudo, vem uma musiquinha irritante, de três acordes, meio buzina, meio bateria eletrônica. Superposta a ela, começam as propagandas.
Primeiro, sobre o celular BrT, da empresa, cheio de facilidades para conferir e-mails ou faturas das contas. Mais música. Pedem para eu conferir as funções do menu do BrT Celular (eu nem tenho um) para “ficar por dentro” de muitas promoções “e muito mais” (o que será? Prefiro esperar o atendente). A musiquinha volta, infame. “A fim de conhecer mais pessoas?”, me pergunta a gravação do outro lado. Não, não estou, mas ela não me ouve. “Consulte o menu (do BrT Celular, claro) e cadastre o seu perfil”. E lá vem a musiquinha infernal. “Registrou um momento único? Mande um torpedo!”. Eu não mereço isso. “Quer ganhar prêmios todos os dias?”. Ué, quem não quer? Enquanto não sou atendido, descubro que basta enviar torpedos e trocar pontos por prêmios. Se eu tivesse um torpedo, começaria por apontar para o serviço de atendimento da Brasil Telecom. Mas continuo aguardando, paciente.
A musiquinha ganha fôlego. E tome propaganda. “Não consegue acompanhar notícias do dia-a-dia?”. Eu não consigo, ninguém consegue, mas descubro – oh! – que basta acessar o menu do BrT Celular para que o mundo se abra aos meus olhos. “E muito mais!”. Adoro isso. Aliás, descubro, ainda, que o expediente do torpedo é a maneira mais fácil e rápida de se comunicar “quando você não pode falar ou não quer falar”. Entenderam a sacada? Como pude viver até hoje sem perder uma hora da minha manhã ouvindo os reclames da Brasil Telecom? Depois, incrivelmente, a voz gravada me pergunta: “Cansado da musiquinha do seu celular?” Hahahahahahahaha! Esses caras do BrT Celular são uns pândegos!
São 10h21, Estou ouvindo propaganda há 10 minutos, e nem sei se estou pagando essa ligação. Preciso lembrar de perguntar ao atendente, se ele me atender, é claro. A musiquinha não pára. “Sua conta da Brasil Telecom tem selo de qualidade do Inmetro”. Já o serviço de atendimento... “Tem tudo para facilitar a sua vida”. Ok, ok, eu sei quando estão tirando sarro de mim. Mas não vou desistir. Acho que eles percebem o meu espírito perseverante porque, após um último informe sobre os serviços de convergência da empresa (“multiconferência com vídeo, áudio e web”), sou finalmente atendido por alguém em carne osso. O nome dela é Ana Lúcia. São 10h24.
Ana Lúcia é da infantaria do telemarketing da Brasil Telecom, percebo logo. Ela não quer saber de frescura nem de desculpa besta.
- Quer cancelar a linha? Por quê? Qual o motivo? Alguma coisa ocorreu?
Tento acalmá-la, digo que é por um motivo pessoal, preferi mudar de operadora. Ana Lúcia fica furiosa. Nem respira. Dispara uma metralhadora verbal que me deixa aturdido.
- É um motivo pessoal? Que motivo pessoal? Olha, o senhor está querendo cancelar uma linha econômica, um pacote excelente. Não quer transferir para outra pessoa? O senhor pode transferir para outra pessoa! Uma boa ação faz o mundo melhor!
São 10h28 e eu preciso trabalhar. Digo isso para Ana Lúcia, mas ela não foi treinada para ter piedade. Na Brasil Telecom a ordem, imagino, é nunca perder um cliente, nem que para isso seja preciso azucriná-lo, tomar-lhe o tempo de trabalho e deixá-lo plantado por uma hora apenas para cancelar uma linha. Ana Lúcia insiste, sabe que estou trocando a empresa dela por outra, quer saber o nome, quer saber o porquê dessa traição. Perco um pouco a paciência.
- Ana Lúcia, você pode, por favor, cancelar a minha linha, porque eu preciso trabalhar?
- Mas eu nunca disse que não podia, eu só quero saber por que o senhor quer cancelar a linha.
- Por um motivo pessoal, já disse.
- Mas qual motivo? O senhor trocou de operadora por que, afinal?
- Achei a logomarca da outra mais bonita.
Foi um erro. Jamais deveria ter usado de ironia com Ana Lúcia. Naquele momento, soube que tinha arranjado uma inimiga feroz dentro do sistema. Iniciei, então, uma batalha sinistra com a atendente da Brasil Telecom.
São 10h29. Ana Lúcia muda o tom de voz, torna-se fria, pragmática. Pede o meu número do CPF, a data de nascimento, o nome completo. Diz que vai “analisar” minha conta e pede para eu aguardar. Eu arrisco uma ofensiva.
- Você é Ana Lúcia de quê?
- É só Ana Lúcia, é meu nome de atendimento.
Silêncio do outro lado da linha. Ana Lúcia deve estar fazendo consultas no manual de atendimento. Tenta entender minha estratégia, descobrir o que está errado. Talvez até tenha chamado o supervisor. Passados seis minutos, tenho a impressão de que ela desligou. Arrisco-me de novo.
- Alô?
Ana Lúcia reaparece, tem a voz gélida. Põe em prática o tratamento dispensado pela empresa aos traidores.
- Aguarde mais um instante, por favor.
Eu aguardo. Estou disposto a não desistir. O funcionário da outra operadora, quando eu disse que iria cancelar o telefone fixo da Brasil Telecom, deu uma risadinha de dó. Segundo ele, ninguém estava conseguindo, só no Procon. Eu havia chegado até Ana Lúcia, não iria desistir agora. Fiquei aguardando. Iria aguardar até o outro dia, se necessário. Iria resistir. Ana Lúcia é o exército alemão, eu, Stalingrado. Mas não vai ser fácil.
- Senhor, estou verificando sua linha, ela tem muito mais economia em relação a qualquer operadora.
Ah, essa é Ana Lúcia. Incansável. Chego a admirá-la. Em outras circunstâncias, poderíamos mesmo ser amigos. Mas agora eu tenho que derrotá-la, e não vou abrir mão disso. Ela tenta me alertar para as “propagandas fantasiosas” das outras operadoras, do erro que estou cometendo ao abandonar a Brasil Telecom por outra empresa de “qualidade inferior”. Estranho, ela nem sabe qual é a outra empresa. Mas Ana Lúcia é assim, despreza detalhes bobos.
- Matematicamente falando, o senhor vai pagar excedente na outra operadora.
Ana Lúcia quer me enlouquecer, matematicamente falando. Mantenho a atitude, sei que ela está ferida por conta da minha ironia lá de cima, mas, principalmente, pela minha posição irredutível. Aproveito o momento de fraqueza dela. Em vão.
- Ana Lúcia, por favor, cancele a minha linha e me informe o número do protocolo.
- Então, continue aguardando. Mas deixe eu continuar falando sobre a sua linha.
Fecho os olhos. Do outro lado, Ana Lúcia recupera terreno. Fala da economia da qual estou abrindo mão, da qualidade do serviço (ela não sabe que, para instalar a linha lá em casa, passei um mês indo e vindo à Brasil Telecom). A certa altura, sai-se com essa.
- Trocar o certo pelo duvidoso é uma coisa incerta.
São 10h40. Começo a temer pela saúde mental de Ana Lúcia. Ela tem meus dados, meu endereço. Pode querer se vingar. Eu não devia ter feito aquela gracinha da logomarca. Nos cinco minutos seguintes, ela passa a alternar silêncios com um tenebroso “aguarde mais um pouco, por favor”. Às 10h45, ela tenta de novo.
- Tenho que preencher o espaço da justificativa para o cancelamento da sua linha. Coloco que foi porque o senhor achou a logomarca mais bonita mesmo?
É só uma ligação, mas pude sentir o cheiro de enxofre. Ana Lúcia é muito melhor treinada do que eu imagino. Agora ela veio com ironia para cima de mim. Por essa eu não esperava, Ana Lúcia tem reações subjetivas! Se eu fosse supervisor dela, a promovia. Mas sou só o inimigo. Preciso vencê-la.
- Sim, para mim está ótimo.
- E nome da operadora?
- Prefiro não falar.
- Então, aguarde. Qualquer dúvida, é só me chamar.
São 10h45. Estou há 35 minutos tentando cancelar uma linha telefônica. Penso em desligar. Estou cansado, o celular está queimando a minha orelha, mas penso em Ana Lúcia, vitoriosa do outro lado, a comentar com as colegas, “venci mais um”. Mantenho minha posição. Ela me pergunta se a próxima fatura pode ser mandada para o mesmo endereço. Digo que sim. Pergunta-me o número do telefone fixo da nova operadora. Digo que não é preciso. Isso a deixa realmente frustrada. A voz dela perde os agudos, parece um sussurro de morte.
- Então, vai ficar incompleto aqui.
Eu aproveito para tripudiar.
- Por mim, não tem problema.
Aguardo mais um tempo. Há seis ligações em espera no meu celular. Estou exausto, irritado, cheio de ódio no coração, mas Ana Lúcia não pode perceber. Fico pensando como deve ser viver em um país onde você não precise explicar para a atendente as razões que o levaram a mudar de operadora. Algo como “disque 7 e cancele sua linha, muito obrigado”. Em dois minutos, no máximo. Sem Anas Lúcias, sem o deboche de ter que esperar uma hora para fazer uma coisa dessas.
São 10h59. Ana Lúcia anuncia sua capitulação.
- Senhor, sua solicitação foi concluída com sucesso. A Brasil Telecom agradece, etc, etc, etc.
Recebo o número do protocolo de atendimento (?) e espero para dar nota ao serviço, conforme me foi solicitado, quase uma hora atrás. Uma voz mecânica me avisa:
- Digite “1” se a sua avaliação for “muito insatisfeito”.
Digitei. Aliás, esperaria mais uma hora para digitar esse “1”, se fosse necessário.
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