O delegado Dirceu Gravina sentiu tremores e falta de ar quando indagado, na terça-feira 17, em frente à delegacia de polícia onde trabalha, em Presidente Prudente (SP), sobre suas atividades nos porões do DOI-Codi (Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo, no início dos anos 70. Gravina, conhecido na época pelo codinome JC, quase perdeu a fala. Ele é citado por ex-presos políticos como um dos mais ferozes torturadores brasileiros no período da ditadura militar no País. Gravina nega. Mas tem motivos para se preocupar.
Passados mais de 30 anos, os generais brasileiros responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos inexplicáveis não foram levados aos tribunais. Mas os agentes envolvidos na repressão política no País ainda temem cobranças pelos crimes que praticaram. Familiares dos mortos e desaparecidos também insistem na aplicação de punições, a exemplo do que ocorreu em países como Argentina e Chile.
Duas famílias, a Silva Telles (com cinco de seus representantes) e a de Luiz Eduardo Merlino, movem processos na Justiça contra acusados de assassinatos e tortura. Agora, o Ministério Público Federal (MPF) também encaminhou ação à Justiça Federal para responsabilizar civilmente torturadores e autoridades da época da ditadura militar no Brasil por crimes cometidos no DOI-Codi paulista, entre 1970 e 1976. A Procuradoria-Geral da República de São Paulo avalia que agentes públicos, “notadamente da União Federal”, praticaram abusos e atos criminosos contra opositores ao regime, “em violação ao princípio da segurança pessoal”.
Ilegalidades ocorridas naquela instituição militar, como as prisões ilegais, torturas, homicídios e desaparecimentos forçados, são consideradas pelo Ministério Público como crimes de “lesa-humanidade”. A ação lembra que o Comitê de Direitos Humanos da ONU recomendou ao governo brasileiro que torne públicos os documentos sobre violações aos direitos humanos no País e responsabilize os autores de todos esses crimes.
A ação tem alvos específicos: os então comandantes do DOI-Codi naquele período, o hoje coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, que vive em Brasília, e o tenente-coronel Audir Santos Maciel, do Rio de Janeiro. Ustra já responde a processos de responsabilização das famílias Telles e Merlino. Caso o pedido do MPF seja aceito, ele e Maciel não poderão mais exercer cargos públicos.
São citados ainda dois superiores de Ustra e Maciel: o comandante do II Exército na época, general Ednardo D’Ávila Mello, e o subcomandante do órgão, capitão Dalmo Cirillo. Ambos estão mortos. Os ministros do Exército, generais Orlando Geisel (de 1969 a 1974), Vicente Dale Coutinho (1974) e Sylvio Frota (de 1974 a 1977), só não integram o processo porque também já faleceram. O mesmo ocorre com os ditadores de plantão Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, assim como o poderoso chefe do Centro de Informações do Exército (CIE) na época, general Milton Tavares de Souza, que depois virou comandante do II Exército. Todos já morreram. Em paz e impunes.
A política de repressão e perseguição ampla “mediante violência” partiu, naquele momento da história do País, da Presidência da República e do Ministério do Exército, avalia o procurador regional Marlon Alberto Weichert, autor da ação juntamente com a colega Eugênia Gonzaga Fávero. Assim, se os responsáveis pelas torturas não tiverem seus nomes execrados publicamente, por não estarem vivos, espera-se, pelo menos, que não continuem dando nomes a escolas, pontes e viadutos pelo País afora. Um dos mais sanguinários policiais do País, o delegado Sergio Paranhos Fleury, do antigo Dops (Departamento de Ordem Política e Social), por exemplo, é nome de rua hoje na cidade de São Carlos (SP). O general Milton Tavares também foi agraciado com um viaduto acima do rio Tietê, em São Paulo. Seu nome está lá estampado.
A ação de Weichert e Eugênia tem o objetivo de impedir que os abusos praticados no passado voltem a se repetir. Subscrita por outros quatro procuradores, ela foi encaminhada e aceita pela Justiça Federal no fim de maio. A Procuradoria pede a devolução para a União de todos os valores pagos em indenizações a 64 familiares de mortos e desaparecidos políticos. São presos mortos no DOI-Codi, reconhecidos oficialmente pelo governo brasileiro no documento Direito à Memória e à Verdade, produzido pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. O total a ser devolvido aos cofres do governo, conforme a ação, ultrapassa 9 milhões de reais.
Seis mil presos políticos passaram pelo DOI-Codi de São Paulo, subordinado ao II Exército, então o maior e mais temido centro de tortura do País durante a ditadura. Esse cálculo não é de familiares de presos nem de revolucionários esquerdistas, mas de um militar da repressão, Freddie Perdigão Pereira (morto em 1997), um dos envolvidos no atentado do Riocentro, em 1981 no Rio de Janeiro.
O número oficial de mortos e desaparecidos políticos no Brasil é 376. Mas a Procuradoria da República estima que, em todo o País, mais de 30 mil pessoas tenham sido vítimas da repressão política, incluindo torturas, prisões e diversos tipos de perseguição. A ditadura argentina somou mais de 30 mil mortes. E puniu seus repressores. “O Brasil não teve uma comissão de verdade para identificar os torturadores e afastá-los do exercício de funções públicas. O Exército sonega informações à sociedade brasileira”, observa Weichert.
A corajosa decisão de Weichert e Eugênia deve motivar iniciativas semelhantes pelo País. Outros agentes da repressão devem ser citados em ações autônomas. Novos processos são analisados pelo Ministério Público Federal. O caso do delegado Gravina, por exemplo, pode gerar uma nova ação, se depender da ex-presa política Lenira Machado, de 67 anos, que o denunciou à CartaCapital. Hoje aposentada, Lenira estudava Sociologia na USP em maio de 1971 e militava no clandestino Partido Revolucionário dos Trabalhadores (cisão da Ação Popular), quando foi presa pela equipe do delegado Fleury.
Ela passou dois dias no Dops, no bairro da Luz, em São Paulo, e de lá foi levada para o prédio do DOI-Codi, na rua Tutóia. Ali, foi barbaramente torturada três vezes ao dia, durante um mês e meio. Entre outros, pelo então investigador Gravina, o JC. Pela primeira vez, Lenira fala publicamente sobre as torturas praticadas por Gravina. “Ele, o JC, era o braço executivo do Ustra”, testemunha. “Quando interrogava, gostava dos afogamentos e do fura-poço, um tipo de tortura em que a pessoa fica abaixada com o dedo no chão e andando em círculos. Ao ficar tonta, apanha. Ele perguntava e torturava diretamente.”
Depois de intermináveis sessões de pau-de-arara, espancamentos e cadeira do dragão (espécie de cadeira elétrica, na qual a vítima, durante o espasmo do choque, estica as pernas e bate numa barra de ferro), Lenira teve um deslocamento na coluna e ficou paralítica. Fez um longo tratamento de fisioterapia para voltar a andar. Condenada a cinco anos de prisão, mesmo doente, cumpriu um ano e oito meses, no Presídio Tiradentes, em São Paulo.
No DOI-Codi, as equipes de tortura se alternavam pela manhã, tarde e noite, relata a ex-presa política. “Todos recebiam orientações do Ustra e tinham reuniões diárias com ele para relatar o que extraíam da tortura”, atesta. “Eles usavam codinomes e morriam de medo que a gente soubesse quem eles eram.”
Mas JC era uma figura marcante. Muito jovem (tinha 21 anos naquela época), era bem diferente dos militares e demais policiais civis, diz Lenira. “Ele usava cavanhaque, cabelos compridos e lisos. Era meio hippie”, lembra. Por causa da cabeleira, surgiu o codinome JC, em alusão a Jesus Cristo. Até hoje, o delegado usa um rabo-de-cavalo.
Gravina foi identificado por Lenira quase por acaso. Um parente dela o viu numa reportagem de jornal sobre um suposto vampiro que agia na cidade de Presidente Prudente e mordia o pescoço de adolescentes. O diligente delegado, que odeia ser fotografado e briga com repórteres por esse motivo, apareceu mais do que devia e, assim, ela o localizou.
As sessões de tortura comandadas por Ustra e JC eram sempre embaladas por música clássica. Quando era tocada num volume alto, alguém ali era torturado com requintes de crueldade. Era uma maneira também de evitar que os vizinhos ouvissem gritos. “Como gosto muito de música, consegui desvinculá-las da tortura e não consigo lembrar de nenhuma delas”, afirma a ex-estudante de Sociologia.
Em breve, Lenira deve repetir esses relatos aos procuradores Weichert e Eugênia. “Quem torturou da forma como ele torturou, não é uma pessoa normal. E eu não posso acreditar que ele não continue torturando presos comuns. Faz parte da personalidade sádica dele. Só um sádico sente prazer nisso”, desabafa. “Não posso permitir que isso aconteça novamente.”
O Ministério Público Federal tem a mesma preocupação. “É notório que o uso da tortura e da violência como meio de investigação policial ainda hoje pelos aparatos policiais brasileiros decorre em grande medida dessa cultura da impunidade. A falta de responsabilização dos agentes públicos que realizaram esses atos no passado inspira e dá confiança aos atuais perpetradores”, afirma a ação dos procuradores.
Manter hoje acusados de tortura em cargos públicos é um risco para a sociedade, assegura Weichert. “É preciso reconhecer que a tortura funciona. Uma pessoa que pratica tortura, que se acostumou com isso e exerce a função de delegado, traz um risco para a sociedade”, analisa. “Vamos analisar esse caso, mas ele precisa chegar a nós oficialmente.” A Ouvidoria da Polícia de São Paulo informou não haver denúncias de tortura contra presos comuns envolvendo o delegado.
Mas, na repressão política, a ficha corrida de Gravina é extensa. Altino Dantas Junior, ex-vereador do PT de Santos, acusa-o de ser responsável pela morte no DOI-Codi do preso político Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, em 21 de maio de 1971. Dantas enviou uma carta com a denúncia, em agosto de 1978, ao general Rodrigo Jordão Ramos, então ministro do Superior Tribunal Militar (STM), que adotava um corajoso posicionamento contrário às violações aos direitos humanos. “Por volta das 23 horas, ouvi quando o retiraram da cela contígua à minha e o conduziram para a sala de torturas, que era separada da cela forte, onde me encontrava, por um pequeno corredor. Podia, assim, ouvir os gritos do torturado. A sessão de torturas se prolongou até a alta madrugada do dia 21, provavelmente até 2 ou 4 horas da manhã, momento em que se fez o silêncio”, relatou o ex-preso político. “Alguns minutos depois fui conduzido a essa mesma sala de torturas, que estava suja de sangue mais do que de costume. Perante vários torturadores, excitados naquele dia, ouvi de um deles, conhecido pelo codinome JC (cujo verdadeiro nome é Dirceu Gravina), a seguinte afirmação: ‘Acabamos de matar o seu amigo e agora é a sua vez.’”
A violência não parou por aí. O Grupo Tortura Nunca Mais aponta JC como o policial que metralhou os estudantes Alexander José Ibsen Voerões e Lauriberto José Reyes, ambos militantes do Movimento de Libertação Popular (Molipo), em 27 de fevereiro de 1972, numa rua do Tatuapé, na zona leste de São Paulo. A morte de Yoshitane Fujimori, integrante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), também envolve uma polêmica. Ele teria chegado vivo ao DOI-Codi, em 5 de maio de 1970, conforme JC declarou a outros presos. Depois, apareceu morto.
Casos como esses nunca foram apurados. Para Weichert, incutiu-se no imaginário nacional a idéia de que a Lei de Anistia implica o esquecimento integral de toda a violência ocorrida no País. “Isso não se sustenta nem judicialmente nem sociologicamente. A Corte Interamericana de Direitos Humanos diz que não se faz reconciliação com esquecimento. Isso pressupõe verdade, transparência e justiça”, acredita o procurador.
O jurista Dalmo Dallari, professor aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), aponta como uma “contradição gritante” da Lei de Anistia a ampliação do indulto a todos aqueles que estavam a serviço do Estado. “Esses acusados não eram políticos, eram agentes públicos envolvidos em torturas. É uma legislação feita em causa própria, durante um governo ditatorial”, pontua. “É verdade que outros países seguiram pelo mesmo caminho durante um tempo. Era necessário evitar o conflito. Mas a Argentina e o Chile estão punindo seus repressores. Nós, 20 anos após a redemocratização, nem sequer abrimos os arquivos da ditadura. O brasileiro tem uma tradição de conciliação absolutamente exagerada.”
Se mirarmos no exemplo da Argentina, a história do acerto de contas com os repressores por lá é repleta de avanços e recuos na Justiça. Ainda assim, a impunidade não prevaleceu. Até o fim do ano passado, 263 militares e policiais foram presos ou processados pelos crimes cometidos realizados durante a ditadura. Entre eles, estão incluídos os ex-ditadores Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone, ambos em prisão domiciliar.
A Argentina passou por uma primeira ditadura de 1966 a 1973. Mas foi no segundo período ditatorial, entre 1976 e 1983, que a repressão aos opositores políticos foi marcada por uma violência sem precedentes.
Três anos após a redemocratização, os comandantes das quatro juntas militares que governaram o país foram julgados e condenados à prisão perpétua. As punições motivaram uma série de levantes militares. Para acalmar os quartéis, o então presidente Raúl Alfonsín decretou as chamadas “leis de perdão”, que impediram novos julgamentos contra repressores por 20 anos.
Diversos generais, a exemplo de Videla, obtiveram indultos e conseguiram manter-se afastados da cadeia por algum tempo. Em 2005, no entanto, a Suprema Corte argentina, já com vários juízes indicados pelo presidente Néstor Kirchner, derrubou as leis que protegiam os repressores. Centenas de processos contra militares e policiais reapareceram nos tribunais.
No Chile, há divergências sobre o número de vítimas da ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990. As estimativas variam de 3 mil a 10 mil opositores assassinados. Apesar da elevada cifra, o governo democrático que sucedeu Pinochet não questionou a Lei de Anistia, que perdoava crimes anteriores a 1978. Nem tentou rever as regalias ao ex-ditador previstas na Constituição de 1980. Tanto que, após deixar a Presidência, Pinochet chefiou o Exército por oito anos.
Alvo de mais de uma dezena de processos que não vingaram, por conta dos benefícios de ex-chefe de Estado, Pinochet só foi preso graças ao empenho do juiz espanhol Baltasar Garzón, que acolheu as denúncias de familiares de espanhóis desaparecidos no Chile e abriu um processo contra ele pelos crimes de genocídio, terrorismo e tortura.
Em obediência a um mandado internacional de busca e apreensão expedido pela Justiça espanhola, a Scotland Yard deteve Pinochet em Londres, onde ele permaneceu em prisão domiciliar por 503 dias. De volta ao Chile, o ex-ditador perdeu a imunidade e continuou sob investigação, mas conseguiu se manter afastado dos tribunais por razões médicas. Morreu em 2006 e foi sepultado sem honras de Estado nem declaração de luto oficial. A presidente chilena Michelle Bachelet, presa, torturada e exilada durante a ditadura, recusou-se a comparecer ao enterro.
Apesar da condescendência com Pinochet, nos últimos anos a Justiça chilena iniciou uma série de julgamentos contra militares e policiais que atuaram na repressão. Pouco mais de 20 agentes foram condenados até agora, alguns à prisão perpétua. Mas, em maio, quase uma centena de militares chilenos e antigos oficiais da Dina, o serviço secreto da ditadura, foram presos pelos crimes cometidos sob as ordens de Pinochet.
No Brasil, a situação está muito aquém dos exemplos dos vizinhos do Cone Sul. Até agora nem sequer conseguimos responsabilizar na área cível um único agente de repressão. Que dirá colocá-los na cadeia. A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, por exemplo, insiste há anos na abertura dos arquivos da ditadura.
“Não precisa abrir tudo. Há documentos que podem comprometer a soberania nacional ou provocar incidentes diplomáticos. Como também existem pessoas que não estão dispostas a ver a vida de familiares devassada”, pondera o advogado Marco Antônio Barbosa, presidente da comissão. “Mas é necessário criar um critério justo e claro para revelar alguns documentos e avançar nesse trabalho de resgate da memória”, completa.
Para Barbosa, a punição criminal dos torturadores e assassinos a mando da ditadura ainda é algo muito distante da realidade brasileira. Ainda assim, ele acredita que o processo de responsabilização civil movido pelo MPF pode trazer avanços. “Os comandantes do DOI-Codi não serão presos, mas eles devem ser obrigados a ressarcir o Erário pelas indenizações que foram pagas por conta dos crimes. E o depoimento deles pode ajudar a esclarecer fatos ainda obscuros.”
Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, não poupa argumentos para defender a punição exemplar a todos os que atuaram na repressão política. Autor da representação que levou o MPF a ajuizar a ação civil pública contra os antigos comandantes do DOI-Codi, ele atuou em outros três casos contra a União movidos por familiares de vítimas. Para Comparato, o recente processo “pode abrir caminho para punir tanto os executores como os mandantes dos crimes”.
Embora considere difícil identificar todos os que ajudaram no aparato da repressão, até porque muitos documentos da época continuam sob sigilo de Estado, o advogado acredita ser possível, inclusive, estender esses processos aos colaboradores civis da ditadura. “Os empresários que ajudaram a financiar a repressão também devem ser punidos. É o princípio da co-autoria. E tem muita gente viva gozando dessa impunidade. Os filhos e netos deles têm o direito de olhar nos olhos dos pais e avós e perguntar: vocês foram responsáveis por mortes e torturas?”
A argumentação de Comparato tem relação com uma realidade ignorada por boa parte dos brasileiros. Os militares contaram com o apoio inestimável de setores da classe média e da elite, inclusive no financiamento dos órgãos de repressão. De acordo com um levantamento realizado pelo Projeto Brasil: Nunca Mais, diversas multinacionais, como o Grupo Ultra, a Ford e a General Motors, entre outras, financiaram a Operação Bandeirante (Oban), projeto piloto de repressão que resultou na criação do DOI-Codi (quadro à pág. 29). Entre os doadores, destaca-se a figura do industrial dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Boilesen, diretor do Grupo Ultra. Segundo relatos de vítimas, contestados pela família do empresário, ele participava pessoalmente de sessões de tortura e teria, inclusive, emprestado o nome a um instrumento de suplício: a “pianola de Boilesen”, uma espécie de teclado com eletrochoque.
Boilesen tinha trânsito livre na Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). Quem lhe abria as portas era Theobaldo De Nigris, que presidiu a entidade de 1966 a 1980. Diversos oficiais do Exército admitem que empresários davam contribuições financeiras à ditadura. Mas falam de forma genérica, sem citar nomes. É o caso do general-de-brigada Adyr Fiúza de Castro, que chegou a chefiar o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) do I Exército, no Rio de Janeiro.
Em depoimento para o Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas (FGV), depois publicado no livro Visões do Golpe, Castro conta que, em 1964, ficou surpreso ao marchar com uma brigada do interior de São Paulo para uma unidade do Exército no Paraná: “Lá encontrei nada menos que 18 jipes novos em folha, doados pelos industriais de São Paulo”. Mas também há documentos militares, recentemente divulgados, que comprovam que alguns empresários se recusaram a dar dinheiro, a exemplo do industrial José Mindlin, do Grupo Metal Leve.
A honrosa exceção de Mindlin é sempre lembrada pelo jornalista Ivan Seixas, que passou pelas dependências do DOI-Codi paulista em abril de 1971, quando tinha apenas 16 anos. Filho do metalúrgico Joaquim Seixas, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), ele foi levado ao cárcere juntamente com o pai, sob a acusação de terem executado Boilesen, o industrial acusado de contribuir e arrecadar dinheiro para a Oban. Enquanto eram barbaramente torturados, a casa da família foi saqueada. A mãe e os outros irmãos dele também foram presos.
Logo no segundo dia de cadeia, Ivan foi convidado a dar um “passeio” pela rua Tutóia, onde ficava a sede do sombrio DOI-Codi paulista. Surpreendeu-se, diante da banca de jornais, ao ler a notícia de que o pai havia sido morto num confronto com a polícia. “Eles mostraram a reportagem, mas meu pai estava vivo”, conta. Horas depois, a família ainda escutava a voz de Joaquim nos interrogatórios. Somente mais tarde, conseguiram ouvir um diálogo entre dois agentes que confirmou a morte. No processo contra a organização de esquerda MRT na Justiça Militar, há uma foto do cadáver de Joaquim. Para a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, que investigou o caso, há “inequívocos sinais de espancamento e de um tiro na altura do coração”.
Ivan permaneceu por um mês no DOI-Codi, depois foi transferido para outras delegacias e penitenciárias. Ao todo, ficou seis anos preso. “Nesse primeiro mês em que estive lá, não fui torturado pelo Gravina. Ele bem que queria. Veio pessoalmente na cela fazer ameaças, dizer que eu não sairia vivo. Mas ele não podia mexer comigo. Fui capturado por outra equipe. Já o Ustra, conhecido como Tibiriçá, esteve presente na sala. Não batia, mas dava ordens: ‘Põe ele no pau-de-arara, faz isso, faz aquilo’.”
Pelo que passou sua família nos porões da ditadura, Ivan gostaria que o governo e a Justiça brasileira tivessem a mesma postura dos vizinhos argentinos.
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