Junho de 1994. Quando a primeira edição de CartaCapital chegou às bancas, exatamente 499 edições atrás, o Brasil já entrava em ebulição político-eleitoral para escolher o sucessor do presidente Itamar Franco, um vice-presidente que chegou ao exercício da Presidência pelo impeachment do titular, Fernando Collor.
O sociólogo Fernando Henrique Cardoso ganhou a eleição do operário metalúrgico Luiz Inácio da Silva, o Lula. A vitória foi conquistada com um truque eleitoral. FHC foi batizado criador do Plano Real. Naquele mês de junho, o real ainda não circulava. A paternidade da moeda, porém, seria explorada intensamente a partir do mês de julho e ainda na campanha eleitoral. O real foi retirado do currículo do presidente. Não há exemplo anterior de qualquer ministro da Fazenda que tenha passado à história como criador de uma nova moeda.
Responda rápido se duvidar da afirmação: quem era o ministro da Fazenda de Getúlio Vargas, em 1942, quando o cruzeiro substituiu o mil réis?
Foi por essa razão que, em 9 de junho de 1994, a Folha de S.Paulo chamou na primeira página a informação de que FHC tinha sido notificado pela Justiça para se defender da acusação de uso do Plano Real para obter vantagens eleitorais. A resposta do notificado é curiosa: ele disse que o fato configurava um ato de “antipatriotismo”. “O Brasil sou eu”, terá pensado FHC, que não é conhecido exatamente pela modéstia. Talvez essa certeza seja também um fator que o tenha levado a se desfazer de parte do patrimônio público a preços módicos.
Afora esse pequeno golpe publicitário do Plano Real, a grande novidade no período é que o operário, derrotado em 1989, por Collor, e duas vezes por Fernando Henrique (94 e 98), ganhou a Presidência da República em 2002.
A vitória de Lula, conduzida com o estandarte do entusiasmo e da esperança, adaptou-se às regras básicas da política apenas com algumas diferenças. Diferença não é mudança, transformação.
Lula tirou milhões da miséria. Essa inclusão social importante, mas não definitiva, foi feita pelo Bolsa Família, um grandioso programa de assistência. Não fosse esse ponto elogiável, valeria para o governo do PT uma cláusula pétrea do liberalismo do antecessor: os direitos políticos compensam a inexistência dos direitos sociais. Esses últimos 14 anos republicanos não diferem essencialmente dos anteriores 105 anos da República brasileira. O período é apenas um minúsculo recorte de uma história quase monolítica, uma evolução preguiçosa e cômoda, como já foi chamada, com pouquíssimos momentos de mudanças significativas. Ou seja, aquela mudança que muda e não a que muda para conservar.
Numa história sem saltos qualitativos, a pauta dos jornais costuma indicar algumas das conseqüências da ilusão de mudar para deixar tudo como está. As sementes da perturbação produzem espinhos.
Um exemplo: a luta dos sem-terra que foi parar na primeira página do jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 2 de junho de 1994 – “Sem-terra usam técnica de guerrilha” – e continuava na primeira página no dia 11 de junho de 2008: “MST bloqueia estradas e indústrias em 13 estados”.
Vem daquele ano também outro problema de enorme atualidade. Trata-se das doações para as campanhas eleitorais que deram tanta dor de cabeça a Lula, para a alegria da oposição e, agora, atormentam a tucana Yeda Crusius, para prazer dos governistas. É melhor, no entanto, que nem um nem outro acredite no ditado de que quem ri por último ri melhor. Nessa questão nunca se sabe quem será o último a rir.
No dia 13 de junho de 1994, o Estadão dizia, em reportagem sobre o grande comício do PT, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, que o partido gastaria 80 mil dólares. E que o “orçamento oficial” da campanha previa uma despesa de “pelo menos 30 milhões de dólares até o fim da eleição”. De onde viria tanto dinheiro para os petistas?
“Campanhas estão irregulares”, gritava a manchete da Folha de S.Paulo, em junho de 1994, apoiada numa informação do Tribunal Superior Eleitoral de que “todos os candidatos” estavam “agindo irregularmente” com relação aos gastos de campanha. Na mesma página, Antonio Carlos Magalhães, ex-governador da Bahia, eleito senador naquele ano, garantia que “o Plano Real” não sustentaria a campanha de FHC. Errou. As previsões dos políticos, contaminadas por interesses pessoais, são quase sempre terrivelmente falhas. FHC ganhou de Lula no primeiro turno.
Mais uma previsão errada, anunciada em manchete pelo jornal O Estado de S. Paulo: “País caminha para crise institucional, prevêem Planalto e parlamentares”. A razão para tanto e desnecessário temor saía de “análises internas da Presidência da República” e consenso “entre líderes de diferentes partidos no Congresso”, a partir do fracasso da reforma da Constituição que os tucanos queriam antes de FHC assumir: as privatizações e quebra de monopólios nacionais.
A manutenção dos juros altos era também uma prioridade na agenda dos economistas tucanos. Uma manchete da Folha de S.Paulo informava, em 11 de junho, que o presidente Itamar Franco queria regulamentar o item da Constituição que limita os juros reais em 12% ao ano. “A equipe econômica está perdendo as rédeas do Plano Real”, dizia o jornal e listava a interferência de Itamar Franco na fixação dos aluguéis, nas mensalidades escolares e lei antitruste.
Nessa agenda sem renovação, nem mesmo a idéia da televisão pública é uma novidade. Pelo menos na cabeça de Lula, que percebia a dificuldade de ser tratado com alguma isenção pela mídia brasileira. Em 9 de junho de 1994, o candidato petista ganhou espaço no Estado de S. Paulo com uma afirmação feita durante visita à cidade de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. “Lula quer canal de televisão para se defender”. Se fosse eleito presidente, “para se defender das críticas dos meios de comunicação”, Lula prometia criar uma emissora pública que atingisse “do Oiapoque ao Chuí”.
A taxa de juro já esteve oficialmente abaixo dos 12% no governo Lula. Mas subiu de novo. Essa queda-de-braço entre o Banco Central e os políticos se arrasta nesses 14 anos. O BC se vale das crises internacionais e mantém o Brasil no topo do ranking dos países com os juros mais altos do mundo. Juros altos e economia financeirizada são as condições básicas do “capitalismo de cassino”, segundo o batismo dado ao modelo.
Sob esse ângulo, o processo político-econômico parece um filme já visto, com algumas cenas novas. Entre elas a indiscutível vontade de Lula de dar mais movimento à luta daqueles que buscam mais direitos e mais provisões e, com isso, aumentar, um pouco, a oportunidade de vida de pessoas tiradas da miséria. Por outro lado, ao abandonar alguns conceitos que propiciavam conflitos fundamentais para a sociedade brasileira Lula e o PT tornaram-se quase iguais aos outros. O realismo político jogou o partido na disputa do poder pelo caminho conhecido. Havia mais diferença e mais graça quando os petistas militavam também por alguns objetivos mais abstratos. Sem isso, a diferença se esmaeceu. Assim, a história pode ficar, no futuro, muito parecida com a contada hoje, que é quase igual à de 14 anos atrás, quando CartaCapital apareceu como uma novidade no repetitivo cenário da imprensa brasileira. Chegou disposta a formar montanhas a partir de grãos de areia.
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