Instalada em uma lojinha de subsolo na zona rural do município de Espigão D’Oeste, em Rondônia, onde negocia a compra e venda de diamantes, Edvaneide Vieira de Oliveira, de 35 anos, foi convocada pela Polícia Federal, há pouco mais de um mês, para depor. Para tal, fez uma viagem a um município próximo, Pimenta Bueno, onde está instalada a base central da Operação Roosevelt, da Polícia Federal, responsável pela repressão ao garimpo e ao comércio ilegal de diamantes na reserva indígena cinta-larga. Aos federais, Edvaneide revelou como e por que foi procurada, em dezembro de 2007, por duas jornalistas interessadas em ligar um procurador da República local, Reginaldo Trindade, a algum tipo de lobby de extração ilegal de diamantes na região. A comerciante contou uma história e tanto.
No depoimento à PF, Edvaneide disse ter sido procurada pelas repórteres Ivonete Gomes e Marley Trifílio, ambas do Rondoniagora, noticiário francamente favorável ao governador Ivo Cassol (sem partido), em dezembro de 2007, para uma “videorreportagem”. Segundo a comerciante, as duas, no entanto, se apresentaram como repórteres do jornal O Estado de S. Paulo e pediram a ela para falar sobre um seqüestro sofrido pelo procurador Reginaldo Trindade no fim de 2007, pelos índios cinta-larga, juntamente com um representante das Nações Unidas, o espanhol David Martín Castro. Os dois foram acusados de ter inventado o seqüestro, conforme a prestimosa denúncia da revista Veja em abril, replicada insistentemente pelo Rondoniagora. O seqüestro foi suspenso depois de uma negociação com o então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Mércio Gomes. A campanha difamatória contra os seqüestrados em Rondônia só parou em maio, depois que o Ministério Público Federal (MPF) divulgou uma nota de repúdio ao noticiário.
No depoimento tomado pelo delegado federal Rodrigo Carvalho, Edvaneide de Oliveira afirmou que Ivonete Gomes (“meio gordinha, cabelo com reflexos loiros, comprido”), e Marley (“gordinha, cabelo com reflexos, mais curto”) queriam que ela “inventasse uma história para comprometer algum político, empresário ou autoridade conhecida” e, também, acusasse o procurador Trindade de estar “fazendo lobby para alguma pessoa forte”. Segundo a comerciante, Ivonete revelou ter ido lá “só para isso”. Mais adiante, relatou Edvaneide, a repórter teria apresentado uma lista de nomes para ligar o suposto lobby de Trindade a “alguém muito forte”, mas ela não concordou em referendar nenhum dos nomes. A comerciante acusa as jornalistas, ainda, de terem oferecido dinheiro em troca de um depoimento contra o procurador. “Elas me filmaram sem o meu conhecimento”, denunciou. “O cinegrafista estava com a câmera no colo e (elas) disseram que estava desligada.”
Reginaldo Trindade também foi acusado, com base em um vídeo feito em uma reunião com índios suruís, em 2005, de apoiar a extração ilegal de madeira. Ele nega as acusações (de fato, no vídeo não há sustentação para a acusação) e vê o dedo de Ivo Cassol na montagem de um dossiê contra ele levado a cabo por oficiais da Polícia Militar com a ajuda de um funcionário da Funai, José Nazareno de Moraes, processado pelo MPF por envolvimento na extração ilegal de diamante e madeira da reserva cinta-larga. O documento, uma vez terminado, foi enviado anonimamente para quase 90 órgãos públicos do País, da Câmara de Vereadores de Espigão D’Oeste ao Congresso Nacional, em Brasília. Mais tarde, a Polícia Federal apontou como autora da peça a mesma jornalista Ivonete Gomes, do Rondoniagora. Procurada pela reportagem de CartaCapital, a repórter não foi encontrada nem respondeu a um e-mail com solicitação de entrevista.
O foco no procurador Trindade, personagem central da tal “videorreportagem” produzida pelo grupo de jornalistas do Rondoniagora, é parte de um enredo político montado, segundo a Polícia Federal, para desviar a atenção dos muitos problemas pelos quais passa o governador do estado, Ivo Narciso Cassol, eleito pelo PPS, mas sem partido desde que foi denunciado ao Supremo Tribunal Federal (STF), por compra de votos, em agosto de 2007, juntamente com o senador Expedito Júnior (PR-RO). A ação do Ministério Público teve a participação ativa de Reginaldo Trindade, inclusive no desdobramento do caso, que resultou em outro processo, por coação e intimidação de testemunhas por parte da dupla Cassol-Expedito. O senador chegou a ser cassado, em abril de 2007, pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de Rondônia, mas se mantém no cargo, graças a uma liminar do Tribunal Superior Eleitoral.
Contra Cassol também corre um inquérito, de número 450, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde 2004, de autoria do Ministério Público Federal de Rondônia, no qual ele é acusado de se associar a contrabandistas de diamantes para explorar ilegalmente jazidas localizadas na reserva cinta-larga por meio da Companhia de Mineração de Rondônia (CMR), com apoio técnico da Universidade de Viçosa (MG). A PF chegou a essas informações depois de deflagrada, em 2003, a Operação Lince, voltada para a repressão a roubo de cargas e contrabando no Norte e em São Paulo. A investigação ganhou força a partir de abril de 2004, quando 29 garimpeiros foram mortos por índios cinta-larga na reserva Roosevelt, também por conta de conflitos provocados pela extração de diamantes.
De acordo com o inquérito, ainda em tramitação no STJ, o envolvimento de Ivo Cassol com a quadrilha de contrabandistas foi revelado por Marcos Glikas, preso durante a operação policial e apontado como chefe da quadrilha da qual participavam dois policiais federais de Ribeirão Preto (SP), o delegado José Bocamino e o agente Marcos Aurélio Soares Bonfim. Segundo disse Glikas, em depoimento à PF, o governador Cassol foi informado das atividades da quadrilha durante reuniões realizadas em Porto Velho, em março de 2003, na presença da chefe de gabinete, Leandra Fátima Vivian, também presidente da CMR. Como prova desse fato, Marcos Glikas apresentou algumas fotos nas quais aparece em uma reunião com o governador de Rondônia, quando, segundo ele, se tratou da exploração de diamantes na reserva Roosevelt, dos cinta-larga, sem a prévia autorização da União, como manda a lei.
A briga de Ivo Cassol com o procurador Reginaldo Trindade é antiga. Remonta ao período em que o atual governador foi prefeito do município de Rolim de Moura, entre 1996 e 2002. Na época, Trindade era promotor de Justiça na cidade e conduziu uma investigação a respeito de um esquema de fraudes nas licitações feitas pela prefeitura. Então representante do Ministério Público Estadual, o atual procurador da República ingressou com oito ações civis de improbidade administrativas contra Cassol e outros auxiliares dele no município. “Desde então, todo revés que ele sofre credita a mim”, diz Trindade. “Ele me elegeu como perseguidor para posar de vítima e desviar a atenção dos processos que correm contra ele.”
Em uma audiência pública realizada na Assembléia Legislativa do estado, Cassol chegou a chamar o procurador de “psicopata com índole vingativa”. Também tentou representar contra ele no Conselho Nacional do Ministério Público e levantou uma exceção de suspeição, no TRE, para anular o processo de cassação sob a alegação de que Trindade não tinha isenção para investigá-lo. Fracassou nos dois intentos. E ainda colocou na conta de Trindade a prisão do filho, Ivo Junior Cassol, e do sobrinho, Alessandro Cassol Zabott, suspeitos de tráfico de influência dentro do governo estadual. Os dois foram presos durante a Operação Titanic, da PF, no Espírito Santo. “Eu nem sequer participei dessa investigação”, conta Trindade. Procurado por CartaCapital, o governador Ivo Cassol informou, via assessoria, que não daria entrevista.
A situação do governador tornou-se mais grave, no entanto, a partir da denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Sousa, ao Supremo Tribunal Federal, em 3 de agosto de 2007, sobre o esquema de corrupção eleitoral em Rondônia, que agiu em setembro de 2006, às vésperas das eleições. De acordo com o procurador-geral, com base no inquérito aberto pela PF, Ivo Cassol, por meio do comitê financeiro de campanha do PPS, doou 200,5 mil reais para a campanha de Expedito Júnior ao Senado. No mesmo período, Elisângela de Oliveira Moura, funcionária da empresa de segurança Rocha Segurança e Vigilância Ltda., de Porto Velho, munida de uma relação com os nomes de todos os vigilantes contratados pela empresa, propôs a eles votarem na dupla Cassol/Expedito mediante pagamento de 100 reais por cabeça.
De acordo com o relatório da PF, os vigilantes que concordaram em receber a propina eleitoral tiveram os nomes encaminhados para José Robério Alves Gomes, tesoureiro de campanha de Expedito Júnior, responsável pela administração do dinheiro doado por Cassol ao candidato ao Senado. Gomes, então, arregimentou dois auxiliares, os irmãos Sidney e Sidcley de Matos Lima, para percorrerem diversas agências bancárias para depositar os 100 reais na conta dos vigilantes. Sidney, cunhado de Gomes, e Sidcley foram flagrados pelas câmeras de segurança do Banco do Brasil e do Bradesco, na capital rondoniense.
Segundo o procurador-geral, a atuação de Expedito Júnior e Ivo Cassol, além de outra candidata, a advogada Valdelise Martins dos Santos, conhecida por “Val Ferreira”, ficou ainda mais evidente por conta de “manobras realizadas, a fim de obstruir a investigação”. Entre elas, uma farsa montada em torno de Carlos dos Reis Batista, o “Cabo Reis”, cuja candidatura a deputado estadual foi usada para tentar descaracterizar o delito eleitoral. Isso porque, no intuito de legitimar os pagamentos feitos a centenas de eleitores, o atual senador Expedito Júnior, auxiliado pelo empresário Libório Hiroshi Takeda, arrecadou recursos com empresas da região, essas orientadas a efetuar doações para a campanha de Reis. Essas contribuições seriam contabilizadas para substituir a propina, sob a rubrica de “contratação de colaboradores” do candidato-laranja.
Na outra ponta, segundo a denúncia do procurador-geral ao STF, o governador Ivo Cassol iniciou uma campanha de intimidação para impedir a investigação da corrupção eleitoral e aterrorizar as cinco principais testemunhas, os vigilantes Diemison Cruz, Edmilton Pimentel, Jayrisson Oliveira, Ednaldo Mota e Joelson Picanço, todas da Rocha Segurança e Vigilância. Para tal, Cassol determinou à Polícia Civil do estado a instauração de inquérito policial para investigar os delatores do esquema criminoso. Por essa razão, a Polícia Federal instaurou outro inquérito, desta vez, para apurar a coação das testemunhas.
A base dessa nova investigação foi um inquérito estadual instaurado, em 18 de janeiro de 2007, pela Polícia Civil de Rondônia, a partir de uma representação criminal formulada por outro vigilante, Alan Georgio Araújo Bahia, contra uma das testemunhas, Diemison Cruz. Os federais descobriram que a tal representação foi forjada pelo então subsecretário de Segurança Pública do estado, Renato Eduardo de Souza, e pelo delegado Hélio Teixeira Lopes Filho, a mando de Ivo Cassol. Formalmente, o governador determinou a instauração do inquérito, embora soubesse da incompetência da Polícia Civil no caso, “para se defender e investigar os fatos por si só”. Bahia acabou preso pela PF por falso testemunho.
Cassol, no entanto, não desistiu. Destacou os policiais civis Gliwelkison de Castro e Nilton Cavalcante, a pretexto de entregar intimações, para intimidar os vigilantes com ameaças veladas. Segundo depoimento do grupo, os agentes os aconselhavam a “maneirar” ou mudar os depoimentos sobre as propinas de 100 reais pagas pelos comparsas de Ivo Cassol e Expedito Júnior. Em outra frente, iniciou-se uma rotina de rondas ostensivas próximas às residências das testemunhas e, mais adiante, promessas de cargos públicos no governo, dentre eles, de servidor no Departamento Estadual de Trânsito (Detran). Sem sucesso na empreitada, os policiais decidiram partir para a truculência pura e simples: deram três tiros na casa da mãe do vigilante Ednaldo Mota, a partir de um Fiat Uno vermelho, posteriormente identificado pela PF como veículo à disposição da 6ª Delegacia de Polícia Civil de Porto Velho.
Por meio de escutas telefônicas feitas pela PF, constatou-se que os delegados da Polícia Civil Hélio Lopes Filho e Renato Eduardo de Souza, ambos denunciados pelo procurador-geral Antonio Fernando de Souza, também atuaram para forjar depoimentos de testemunhas favoráveis a Ivo Cassol e Expedito Júnior. Uma delas, Agenor Martins de Carvalho, o “Japa”, era motorista do deputado estadual Euclides Maciel (PSL), então líder do governo na Assembléia Legislativa. Japa também participou das intimidações contra os vigilantes e acabou preso.
Há duas semanas, o STF decidiu investigar Ivo Cassol e o senador Expedito Júnior, além de outras 11 pessoas, por conta da denúncia de compra de votos. No julgamento, o Supremo acatou um recurso da Procuradoria-Geral da República para desmembrar parcialmente os processos, desta maneira alguns acusados serão investigados no STF e outros na Justiça Eleitoral, em Rondônia. Por recomendação do relator do processo, ministro Marco Aurélio Mello, os denunciados deverão ser investigados conforme o foro por prerrogativa de função. O senador será investigado pelo STF, o governador pelo STJ, alguns denunciados pelo TRE e os demais pela primeira instância da Justiça Eleitoral.
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