Uma das conseqüências da crise financeira que se revelou inicialmente no mercado imobiliário dos Estados Unidos e espalhou-se para todas as economias será um reencontro entre o pensamento econômico e a realidade do mundo. A teoria econômica e a realidade que ela tenta compreender são dois pólos que se estimulam mutuamente: a teoria sugere instituições para melhorar o funcionamento da realidade e esta, melhorada numa estimulante dialética, cria novos problemas. A marcha dessa iteração é no sentido de proporcionar à sociedade instituições eficientes que garantam a sua sobrevivência material.
O sistema econômico está imerso num universo social cujos valores transcendem a eficiência produtiva. Esta é, entretanto, fundamental para um viver mais confortável, onde cada cidadão pode usar com plena liberdade a sua capacidade de iniciativa e realizar suas potencialidades. O desenrolar da história mostra que a eficácia produtiva pode ser construída com sucesso maior ou menor em vários regimes políticos. Mostra, também, que o conjunto mais amplo de valores (liberdade individual, relativa igualdade de oportunidade e eficácia produtiva) só pode ser atingido num Estado democrático juridicamente regulado, com eleições livres e organizadas, de periodicidade bem definida. Nelas os cidadãos escolhem o poder incumbente que representará transitoriamente o Estado. À cada eleição, a sociedade "revela" suas preferências, depositando seus votos (as suas esperanças) naquele cujas promessas parecem mais próxima a ela.
Não importa que essa visão idílica (ou ingênua!) seja freqüentemente traída pelo eleito, ou que as instituições já estabelecidas (com seus interesses consolidados) sejam tão fortes que ele sucumba diante delas, ou - o caso mais freqüente - que ele tenha prometido o que não tinha condições de realizar. É a repetição dessas escolhas, condicionadas ao aperfeiçoamento da organização política e do sistema eleitoral e ao desenvolvimento das instituições econômicas, que lentamente faz convergir a administração do Estado na direção das "preferências reveladas" nas urnas.
Nesse processo continuado de "experimentos" políticos, a história revela outro fato da maior importância.
Freqüentemente o poder incumbente eleito tem objetivos próprios. É mistificador. Tende a manipular a opinião pública servindo aos interesses dos grupos de maior poder vocal e de organização. E tem, como finalidade, sua própria sobrevivência, no que é facilitado no curto prazo por medidas sociais e econômicas oportunísticas.
Com todos esses problemas, a organização política que o elege é indispensável para a construção da sociedade em que cada um manifesta livremente a sua "preferência" nas urnas. Deve, portanto, ser preservada. Mas como conciliar, então, essa possibilidade de eleição de um poder incumbente oportunista com a correta administração política que leva ao processo civilizatório desejado? A solução, que emergiu lentamente desde o primeiro quartel do século passado, foi a de retirar do poder eleito a possibilidade de praticar algumas ações oportuno-populistas. O exemplo mais evidente desse processo foi a criação (pelo Legislativo) de bancos centrais operacionalmente autônomos, que retirou, na área monetária, poder do Executivo eleito.
E por que bancos centrais autônomos? Porque um dos bens públicos essenciais, que só o Estado pode produzir, é a estabilidade do poder de compra da moeda. Trata-se de um dos alicerces do bem-estar social. Sobre ele se constroem os "mercados", cujo bom funcionamento é a base da eficácia produtiva, condição necessária, mas não suficiente, para atender às "preferências reveladas" nas urnas.
Os bancos centrais apresentam um enorme déficit democrático. O poder incumbente eleito com milhões de votos entrega (por ordem legislativa) a administração da moeda a profissionais (que nada têm a ver com as "urnas") que, por hipótese, dominam a "ciência monetária" e, o que é mais importante, têm, por definição, repugnância às políticas oportuno-populistas, às quais costuma sucumbir o poder eleito.
O pequeno problema é que a história tem revelado algumas dificuldades. Por exemplo, nos últimos 15 anos de bancos centrais autônomos na América Latina registraram-se pelo menos 26 crises monetárias, que sempre terminaram em substanciais prejuízos para os Tesouros. O "tsunami" monetário que agora ameaça o mundo com uma crise sistêmica, tem claras origens nas políticas monetárias equivocadas dos bancos centrais dos países desenvolvidos e no laxismo e indiferença que demonstraram na regulação dos "avanços" tecnológicos produzidos pela imaginação financeira. A "filosofia" dominante afirma que o sistema financeiro, deixado a si mesmo, teria uma moralidade ínsita, que ratificaria o acerto de eliminar os "constrangimentos regulatórios". Afirmação que agora se verificou patentemente falsa.
Paulson, Rubin, Greenspan, Bernanke e "tutti quanti" estiveram na origem do quase-desastre e agora tentam evitá-lo, apelando para que o poder incumbente eleito corrija seus erros à custa dos cidadãos. Há, portanto, muito trabalho para a economia política. Ela deve sugerir o aperfeiçoamento das instituições para que, no futuro, estas protejam a sociedade do oportunismo-populista dos eleitos e, os Tesouros, da falsa competência dos não-eleitos.
Não deve, entretanto, ignorar a importante contribuição de um sistema financeiro ágil, imaginoso e flexível para o processo de desenvolvimento econômico e social.
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