Há uma reflexão que está muito presente nos dias atuais, que é a da esperança. Lembro-me que escrevendo o livro As asas invisíveis do padre Renzo, discuti isso, e situava a esperança num patamar superior ao da própria fé. E fazia isso a partir das reflexões do próprio Renzo que, entre os presos políticos, no período sombrio da ditadura, encontrara centenas deles desprovidos de fé, no sentido religioso, e, no entanto, cheios de esperança na humanidade e prontos para continuar a luta por um mundo que fosse bom, confortável para todos. A esperança seria, assim, maior do que a fé.
Mário Sérgio Cortella, no livro Sobre a Esperança – um diálogo entre ele e Frei Betto sobre o tema – diz que a esperança pode ser entendida como um desejo acompanhado de expectativa. Não se trata de uma espera apenas. Esperança teria uma força intrínseca voltada à realização de um objetivo. Ela procura, nessa visão, tornar o desejo verdadeiro. Não admite a perda, a falência da expectativa de que algo realmente vai acontecer – é esta a síntese de Cortella. E isso me parece muito correto. E quero discutir isso com os olhos voltados para a política.
Em vários ambientes, sejam aqueles vinculados a uma parcela da esquerda organizada, sejam os integrados por pessoas que não têm militância política sistemática, tenho sentido um clima desesperançado. Ou, dito de outra forma, a esperança é sempre jogada para o futuro. Esse tipo particular de esperança não se alimenta das conquistas do presente. E essa visão, que apenas trabalha com o futuro, e que torna negativo o presente, leva à imobilização política e a uma nostalgia do passado, que pode transmutar-se em melancolia.
Nesse coro nostálgico, de ares melancólicos, há uma revisitação ao passado, quase uma celebração do que já aconteceu. Celebração da resistência, dos pequenos grupos que se reuniam com tanta comunhão e solidariedade, celebração do espírito fraterno de então. Essa exaltação do passado aparece como lamento sobre grande parte da esquerda atual, particularmente daquela esquerda que está no poder. Há um tom religioso em tudo isso, uma espécie de desejo de que o céu se fizesse na terra de um só golpe, e como o céu está longe, vamos esperar o dia que ele chegue.
De um outro ângulo, estritamente político, diria que essa visão sobre a esperança alimenta uma indisfarçável nostalgia da luta armada. Claro que não se sabe mais se o caminho seria o do foquismo rural da Revolução na Revolução, de Debray, ou o de Mao, com seu cerco das cidades através do campo. E essa nostalgia está vinculada à idéia do assalto ao Palácio de Inverno, à epopéia da Revolução Russa, com Lênin e Trotsky à frente. Um dia de revolução e concluído o assalto ao poder, tudo estará resolvido.
A própria Revolução Russa é o desmentido cabal disso. Todos os que leram um pouco sabem das enormes dificuldades enfrentadas por aquela experiência. Sabem que Lênin chegou à Nova Política Econômica (NEP), retomando em parte a economia de mercado, por conta de tais dificuldades e por saber que não bastava a vontade política, por ter consciência de que não bastavam palavras de ordem como ele mesmo chegou a dizer naquela época. A tentativa stalinista de resolver tudo no autoritarismo resultou num enorme genocídio. A visão do assalto ao Palácio de Inverno fracassou. O balanço do século XX evidencia isso.
Creio, portanto, que nessa visão nostálgico-melancólica sobre a esperança, estão entrelaçadas concepções religiosas e laicas. As duas, no entanto, seriam partidárias do milagre. Sei que Hannah Arendt disse que a política é capaz de produzir milagres. E é. Só que tais milagres são uma construção histórica. Têm maturação no tempo. Os que lamentam o presente e jogam a esperança para um futuro distante, pretenderiam que o milagre se fizesse num átimo. E isso vale tanto para os religiosos quanto para os laicos.
Tenho sempre adotado a idéia de que a rememoração do passado como fonte para as lutas presentes é essencial. Isso é Walter Benjamin. Essas reflexões nasceram de debates de que participei como palestrante na XXXV Jornada Internacional de Cinema, realizada em Salvador, em meados de setembro deste ano de 2008. Participei de mesas com Frei Betto, Mauro Santayana, Orlando Senna, Renato da Silveira e Guido Araújo, este o grande articulador, organizador daquela jornada. Ali, em muitos momentos, pude sentir esse clima.
Essa visão não contempla as extraordinárias conquistas realizadas pelo governo de Lula. “Com essa esquerda, não precisamos de direita”. É. Ouvi frases como esta. Avaliações sobre a fraqueza do movimento popular. Atribuição de tal fraqueza ao próprio governo Lula. Nada sobre a democracia, sobre a liberdade que estamos experimentando. Nada sobre os milhões retirados da linha de pobreza. Nada sobre o programa Bolsa-Família, sobre a política de combate à fome. Nada sobre o fato de negros, índios, pobres estarem chegando à universidade pelo caminho do Prouni. Nada sobre as mudanças que o País está experimentando em decorrência das políticas públicas.
Só desesperança. Talvez fosse o caso de relembrar Caetano – “eles fazem tudo pensando no dia de amanhã”. Lembro-me de uma reflexão de Boaventura de Souza Santos, numa palestra realizada na Reitoria da Universidade Federal da Bahia há alguns anos. Ele dizia que era necessário alargar o presente. Só alargando o presente, aguçando o nosso olhar sobre as transformações que estão ocorrendo debaixo dos nossos pés, que vamos desenhar o futuro pelo qual lutamos.
O dia de amanhã deve ser pensado, mas aqui e agora, realizando, com a política cotidiana, aquele dia. Como, com todas as dificuldades, com a específica correlação de forças que estamos vivendo, o governo Lula está fazendo. Eu dizia, nesses debates, voltados para 1968, que estávamos, nesse momento, no Brasil e na América Latina, realizando muito dos sonhos que alimentamos naquele fantástico ano, onde aconteceu a mais bela derrota de nossas vidas e onde estão armazenadas tantas energias utópicas, das quais estamos nos valendo até os dias de hoje.
Mas, para os nostálgico-melancólicos não há o que celebrar na América Latina. Às vezes, é verdade, alguns deles fazem exceções. Concedem espaço a Evo Morales, a Chavez ou a Correa. Não se compreende a singularidade de cada experiência e menos ainda o extraordinário papel de Lula no Continente, papel que todos os demais governantes de esquerda – é, estou chamando governantes de esquerda, de variados matizes – reconhecem com tranqüilidade. Não são capazes de observar que foi Lula, com toda sua ousadia e sabedoria e singular radicalidade, que sepultou a Alca.
Salvo a experiência das FARC, na Colômbia, onde a direita governa, nos demais países do Continente onde a esquerda venceu, o fez pela luta política, no âmbito da democracia, aceitando-se alternância de poder, a força do voto, a decisão do povo.
Estamos vivendo uma revolução democrática em praticamente todo o Continente. E isso deve ser celebrado. Sob essa revolução não desaparece a luta de classes, não desaparecem os conflitos. Só que essa luta, ainda bem, se dá hoje num cenário democrático.
E nós continuaremos a lutar para que esse cenário persista para que possamos cultivar ainda mais a esperança de superar as enormes injustiças sociais de todo esse lado do mundo. Um cenário onde tenhamos liberdade de lutar, de falar, de protestar, de nos organizarmos de modo cada vez mais amplo.
Nada de desesperança, de revisitação melancólica ao passado. Recuperando Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Dito de outra forma, avaliar sempre criticamente a realidade e termos sempre a disposição para a luta política. É a luta política cotidiana que vai garantindo que a esperança não seja apenas uma quimera, mas que seja, como se disse no início, em cada minuto de nossas vidas, a realização efetiva do desejo no sentido mais amplo que possamos dar a isso. Três vezes salve a esperança.
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