Poucas semanas antes do primeiro aniversário, em 2004, da invasão do Iraque pelas tropas dos EUA, o presidente George W. Bush decidiu dar uma entrevista à televisão - e escolheu o “Meet the Press” da rede NBC, então o programa político de maior audiência nas manhãs de domingo. Mas o apresentador Tim Russert, então o mais bem preparado perguntador da TV, preciso e minucioso, não se deixou intimidar pela solenidade do gabinete Oval do presidente, na Casa Branca.
O entrevistador tocou cada ponto crítico, até as dúvidas sobre o serviço militar de Bush e o gigantesco déficit orçamentário (leia a íntegra AQUI). O entrevistado refugiou-se num amontoado de slogans vazios, como os que naqueles dias o presidente repetia nas escalas da campanha eleitoral. Disse dezenas de vezes que Saddam Hussein era “um louco”, “um homem perigoso”, “uma ameaça”. Para a proteção do povo americano, tinha de ser derrubado - garantiu.
Até então mais de 500 soldados americanos já tinham sido mortos, parte inicial do sacrifício imposto pela aventura bélica de Bush - cujo custo em vidas de militares dos EUA eleva-se hoje a 4200, fora as contagens oficial (30.764) e não oficial (100 mil) dos feridos (sem falar nas centenas de milhares de civis iraqueanos que morreram, ficaram feridos ou tiveram de fugir de casa e até do país). O Congresso dos EUA não tinha autorizado o uso da força por achar Saddam “louco” e sim por causa do pretexto falso invocado por Bush - a mentira das ADM (armas de destruição em massa). Russert perguntou se os EUA pretendiam continuar derrubando ditadores “loucos” pelo mundo - e ouviu mais slogans.
O prazo eleitoral de uma comissão
Russert morreu em junho deste ano de 2008 (saiba mais sobre ele AQUI). Aquela fora uma de suas melhores entrevistas. Ao perguntar, por exemplo, porque o ditador não usara as célebres ADM para defender o país da invasão - e porque até então centenas de investigadores da CIA, chefiados por David Kay, não tinham encontrado uma só das tais armas - vieram desculpas: “Era a informação de inteligência disponível”, “Saddam era louco, capaz de tudo”.
Como as perguntas foram mais importantes do que as respostas, vale a pena recordar algumas. Russert lembrou, por exemplo, que Tony Blair, na Inglaterra, também nomeara uma comissão independente para investigar o fracasso da inteligência britânica sobre as ADM. Mas o prazo que fixara tinha sido julho de 2003. Por que o de Bush era março de 2005? Para evitar um relatório delicado antes da eleição de 2004?
Apesar de óbvio, veio a negativa. Depois, nova pergunta: a comissão “independente” de Kay, escolhida por Bush, dirá ao país e ao mundo se houve manipulação e exageros quando o presidente, seu vice Cheney, os secretários de Estado e da Defesa e o governo inteiro alegavam haver provas das ADM? O presidente dispõe-se a depor na comissão? Não. Também não depusera antes na comissão sobre as falhas que precederam o 11 de setembro.
A garantia dele de que o diretor da CIA era competente, fizera um bom trabalho e ficaria no emprego era previsível depois de um recado de George Tenet, dias antes, na Universidade de Georgetown. Tenet avisara que a comunidade de inteligência não aceitava ser bode expiatório (ele se demitiria pouco depois). Seus analistas divergiram de posições de altas autoridades, não viam ameaça iminente e sabiam bem que Saddam estava muito longe de uma arma nuclear (ao contrário do que Bush e Cheney diziam).
Fugindo a um papel central da ONU
O presidente admitiu então que as ADM não iam aparecer. A partir daquele dia passou a dizer que não tinha certeza se existiam, nem sequer se havia “programas de armas” como alegara antes. A nova desculpa: Saddam tinha “a capacidade” e “a habilidade” para fazê-las. Veio a ginástica mental para justificar a guerra preventiva, “Fui à ONU, mostrei provas. Foi aprovada resolução unânime prometendo consequências graves”, afirmou o presidente.
Bush esquecera os detalhes: as provas dele eram fraudadas, por isso a ONU optou por continuar as inspeções. E ante a resistência, os EUA deixaram a ONU de lado. Num desafio ao mundo, optaram pela guerra - a pretexto das armas inexistentes. Já que elas eram só fantasia e invencionice, Bush recorreu ao seu arsenal de palavras: repetiu 23 vezes os adjetivos madman (louco) e dangerous (perigoso), referindo-se a Saddam; e 18 vezes falou da threat (ameaça) que ele representava. A retórica substituia os fatos. E a salada era temperada depois com promessa de democracia e liberdade no Iraque (mas o que viria era mais banho de sangue).
Russert voltava às perguntas. E se o Iraque escolher um regime islâmico radical, fundamentalista? Resposta de Bush: “Não vão fazer isso, conversei com os membros do Conselho de Governo, vão dar direitos às minorias”. O tal Conselho fora criado pelas autoridades de ocupação dos EUA, os membros eram escolhidos a dedo pelos invasores. E o regime já inventava uma votação indireta para não prevalecer a vontade da maioria.
Estava claro que nem o rotundo fracasso no pos-guerra convencera Bush a dar um papel central à ONU no processo, mesmo tendo implorado a Kofi Annan para voltar ao Iraque depois do atentado que matara o brasileiro Sérgio Vieira de Mello e mais 22 integrantes da missão das Nações Unidas em Bagdá. Quando o entrevistador perguntou se a organização mundial teria “papel central” a resposta enganosa falou em “papel vital”. Russert insistiu: “Papel central?” Bush afinal admitiu haver uma diferença. E alegou ser importante o “papel vital” (já que “central” era o controle da tropa invasora).
Chamado de Deus ou da História
Pouco ou nada mudara. Bush não recuou um milímetro. Estava errado sobre as armas proibidas, estava errado ao dizer que as tropas seriam recebidas como “libertadoras” e não “invasoras”, estava errado ao declarar pomposamente o fim das grandes operações militares, estava errado no Conselho de Segurança, estava errado ao considerar a ONU irrelevante. Mas persistia gloriosamente nos erros.
Russert lembrou que em 2000 Bush prometera unir e não dividir o país. E cada vez era maior o ódio a ele nos EUA. Respondeu com uma lenga-lenga, culpando os adversários e alegando que o mundo agradecia sua liderança. “Não é o que mostram pesquisas na Europa, em especial França e Alemanha. Nossa imagem nunca esteve tão mal”, lembrou Russert. E Bush: “Não sei porque. E não acredito em pesquisa”. Dois dias depois de transmitida, a entrevista motivaria uma dura crítica a Bush no editorial do New York Times (leia AQUI).
O entrevistador também lembrou Bush que no Iraque ele estava fazendo exatamente aquilo que tinha repudiado na campanha eleitoral de 2000 - nation building, reconstrução de país. O presidente alegou ser diferente porque levaria liberdade e democracia, para mudar o Oriente Médio. “Um Iraque livre vai mudar o mundo”. Faltou declarar que a invasão fora feita por convocação divina. Mas Bush ficou perto disso: “Recebi um chamado da História e aceitei”.
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