Essa mulher de cento e seis anos, Ann Nixon Cooper, que Obama citou no seu primeiro discurso como presidente eleito dos Estados Unidos, talvez venha a ocupar um lugar na galeria das personagens literárias favoritas dos leitores norte-americanos, ao lado daquela outra que, viajando num auto-carro, se recusou a levantar-se para dar o lugar a um branco. Não se tem escrito muito sobre o heroísmo das mulheres. Entre o que Obama nos contou sobre Anne Nixon Cooper não havia actos heróicos, salvo os do viver quotidiano, mas as lições do silêncio podem não ser menos poderosas que as da palavra. Cento e seis anos a ver passar o mundo, com as suas convulsões, os seus logros e os seus fracassos, a falta de piedade ou a alegria de estar vivo, apesar de tudo. Na noite passada essa mulher viu a imagem de um dos seus em mil cartazes e compreendeu, não podia deixar de compreendê-lo, que algo novo estava acontecendo. Ou então guardou simplesmente no coração a imagem repetida, à espera de que a sua alegria recebesse justificação e confirmação. Os velhos têm destas coisas, de repente abandonam os lugares-comuns e avançam contra a corrente, fazendo perguntas impertinentes e mantendo silêncios obstinados que arrefecem a festa. Ann Nixon Cooper sofreu escravidões várias, por negra, por mulher, por pobre. Viveu submetida, as leis teriam mudado no exterior, mas não nos seus diversos medos, porque olhava à sua volta e via mulheres maltratadas, usadas, humilhadas, assassinadas, sempre por homens. Via que cobravam menos que eles pelos mesmos trabalhos, que tinham de assumir responsabilidades domésticas que iam ficar na sombra, apesar de necessárias, via como lhes travavam os passos decididos, e não obstante continuam a caminhar, ou não se levantando num autocarro, contemo-lo uma vez mais, como aquela outra mulher negra, Rose Banks, que fez história, também
Cento e seis anos a ver passar o mundo. Talvez o veja bonito, como a minha avó, pouco antes de morrer, velha e formosa, pobre. Talvez a mulher de quem Obama nos falou ontem sentisse a serenidade da alegria perfeita, talvez o saibamos um dia. Entretanto felicitemos o presidente eleito por tê-la tirado da sua casa, por ter-lhe prestado uma homenagem que ela provavelmente não necessitaria, mas nós, sim. À medida que Obama ia falando de Ann Nixon Copper, percebemos que a cada palavra o exemplo nos tornava melhores, mais humanos, à beira de uma fraternidade total. De nós depende fazer durar este sentimento.
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