Ocorre-me um enredo estranho, peculiar, não sei se li algum dia e vem da memória, ou de um sonho. É um conto, eu diria, não simplesmente policial. Nele a complexidade é notável, atinge profundidade igual à alma de um país.
O entrecho começa pela descrição do seu protagonista, que o autor batiza Ezequiel. Por trás de olhos azuis carregados de estupor à beira da insegurança, ele é obcecado pelo impulso irredutível da acumulação. Dinheiro e poder. Determinado, audacioso, singra a vida ao sabor de casos de corrupção e falcatruas de alto bordo, com o adendo de capilares operações de escuta telefônica. Uma investigação policial apura-lhe o conjunto da obra e indicia Ezequiel. Nos seus escritórios, apreende, inclusive, discos rígidos que, tudo indica, resumem suas aventuras e apontam parceiros. Nada acontece, com a inestimável contribuição de certa juíza da Suprema Corte, cenho de governanta de castelo escocês e carente de lábios. Ela impede com argumentos “pueris” (o adjetivo é do autor) a abertura dos tais discos.
Desde o momento das privatizações das telefônicas e que tais por parte do governo do Pássaro Misterioso, episódio que passou a ser conhecido como “A Bandalheira Supimpa”, a história de Ezequiel não somente divide a polícia, mas também, e sobretudo, atinge os mais altos escalões da política, para tornar-se epicentro da luta intestina pelo poder. E chega até a embrenhar-se, com tocha e cordas, pelas cavernas dos humores nacionais. Quanto a esta incursão nas entranhas de emoções e pendores da nação, o autor será mais explícito mais adiante.
Depois de indiciado, passam-se quatro anos, e no ínterim Ezequiel prossegue nas suas investidas. Entre outras façanhas, entrega à revista de maior tiragem do País um dossiê falso de contas no exterior de figurões variados, a começar pelo presidente da República. Segundo o autor, trata-se de uma manobra urdida por Ezequiel para medir o grau da sua influência. Regozija-se ao cabo: tudo passa na mais alva das nuvens. Move-se, porém, outra operação policial, comandada pelo delegado Aristófanes. O projeto prevê a conclusão das investigações para data posterior a certas eleições programadas para começo de outubro. O furo de uma repórter de conceituado jornal revela a operação em andamento em abril. Aristófanes decide então apressar o desfecho, na tentativa de evitar que o Manobrista Excelente tenha tempo para excogitar largas precauções.
Como e por que a repórter entrou em cena, e como e por que o jornal publicou-lhe o texto o autor não esclarece. Limita-se a aventar a hipótese de algum redondo contato entre o investigado e a cultivadora de furos. De todo modo, os resultados da operação policial acabam na mesa de um jovem juiz de primeira instância, o qual determina a prisão da indigitada figura e de alguns dos seus apaniguados. Um deles, aliás, tentou corromper um delegado a mando daquele, na certeza de que todos têm seu preço.
Assume grandiosamente a ribalta o presidente da Suprema Corte, pomposo luminar da ciência jurídica, versão às avessas da história do sapo transformado em príncipe. Ele mimeografa habeas corpus a favor dos presos como o aprendiz de mágico multiplica vassouras. Memorável a passagem em que o autor colhe Ezequiel a dizer que na Suprema Corte conta com “facilidades”, bem como aquela em que avisa: obrigado a falar, botará a boca no trombone. E tudo fica basicamente como estava meses a fio. O único evento digno de registro é a autorização dada pela Corregedoria da Polícia para uma operação de busca e apreensão nas casas dos delegados que se permitiram investigar Ezequiel. Só falta prendê-los. O autor, que gosta de suspense, deixa entrever a possibilidade deste happy ending.
Não escapa, de todo modo, à moral da fábula: não há corruptor sem corrupção, e é tolo quem não se aproveita da situação, excepcionalmente favorável para um mestre no assunto como Ezequiel. Inocente, é óbvio, pois cumpre as regras do jogo, e estas valem mais que a lei. Nas linhas derradeiras, a chave para o melhor entendimento: a minoria privilegiada, e os aspirantes ao privilégio, vislumbra em Ezequiel o seu herói, aquele que mostra o caminho da felicidade do alto da montanha da sabedoria.
Enredo de um conto do absurdo? Talvez sonhei, como já disse, e teria sido pesadelo. Observo, porém, certas semelhanças com eventos dos últimos anos ocorridos neste nosso país do futuro.
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