O delegado federal Protógenes Queiroz virou uma celebridade. Afastado da Operação Satiagraha, o policial percorre o Brasil fazendo palestras sobre o combate à corrupção, enquanto se prepara para terminar um curso de especialização na Academia de Polícia, em Brasília. Apenas em outubro, Queiroz esteve em mais de dez fóruns de debate, em faculdades, assembléias legislativas e câmaras municipais, onde, invariavelmente, fala para audiências lotadas. O delegado é reconhecido nas ruas, é paparicado por cidadãos, mas paga um preço alto por ter batido de frente contra grupos poderosos da República.
Queiroz diz ser constantemente seguido, suspeita de estar permanentemente grampeado e alega receber ameaças de morte pelo telefone. Um filho pequeno está sob tratamento psicológico, porque acorda, no meio da noite, gritando pelo pai. Ele mesmo teve de se tratar para curar uma gagueira nervosa, resultado dos dias tensos, antes e depois da operação, responsável pela prisão do banqueiro Daniel Dantas, do Opportunity, em 8 de julho. Uma semana depois, Queiroz foi lançado no ostracismo pela atual direção da PF e tem poucas esperanças de poder voltar a fazer o que mais gosta, investigar corruptos. Ainda assim, crê na condenação de Dantas e na depuração da imprensa brasileira, uma instituição, segundo ele, contaminada pelo poder corruptor do banqueiro baiano. “Tudo tem um preço, mas não reclamo, é o meu trabalho”, diz.
CartaCapital: O senhor acha que, ao convocar agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para a Operação Satiagraha, acabou fragilizando a investigação contra Daniel Dantas?
Protógenes Queiroz: O ingresso dos agentes da Abin e oficiais de inteligência foi uma solicitação minha em razão de uma deficiência de pessoal na Operação Satiagraha, da própria Polícia Federal naquele momento. O comando central da PF, a todo o tempo, tentava destruir o trabalho, e não me deu suporte de recursos humanos, de pessoal.
CC: O senhor está se referindo ao diretor-geral da Polícia Federal, delegado Luiz Fernando Corrêa?
PQ: Não dá para identificar se era o Luiz Fernando ou o Daniel Lorenz (diretor de Inteligência da PF, a quem ele é subordinado), não sei de onde vinha o poder de obstrução. Eu solicitava, evidentemente, ao meu superior hierárquico, o diretor de Inteligência, e a coisa era difícil, amarrada. Num primeiro momento, eu entendi que era em razão de uma transição administrativa (saída do diretor-geral Paulo Lacerda, alçado à Abin, e a entrada de Corrêa), dentro de uma normalidade. Depois eu fui percebendo que não. Era uma situação orquestrada, para paralisar o trabalho, para que aquilo não desse certo.
CC: O senhor estava preparado para a missão?
PQ: Eu tinha um grande volume de dados sobre o Daniel Dantas, desde quando estourou a Operação Chacal (de 2004), quando comecei a acompanhar o caso. Então, eu já tinha estudado o Grupo Opportunity e o Daniel Dantas, três anos antes. Eu sabia do poder do Dantas, da capilaridade que ele tinha nos órgãos federais. Então, perguntei ao doutor Paulo (Lacerda) se ele ficaria como diretor-geral da PF até o final do governo Lula. Ele quis saber o porquê, e eu disse que, se ele não fosse ficar, o caso iria parar. Ele me disse que tinha um compromisso do presidente Lula de que iria ficar como diretor-geral até o fim do governo dele. Então, me senti mais tranqüilo, senão, eu não aceitaria. Sabia que iria enfrentar problemas com a eventual saída dele.
CC: Que problemas o senhor enfrentou?
PQ: Quando o doutor Paulo saiu (em agosto de 2007), repentinamente, todos ficamos assustados. Passados 30 dias, começaram a surgir as dificuldades, e elas foram cada vez mais se agravando. Chegou a ponto de, em janeiro e fevereiro deste ano, eu ter apenas um policial para cumprir a análise de 1,3 mil ligações telefônicas e mais de 6 mil e-mails por dia. Então, como é que iria analisar o material? Aí eu resolvi, como parte do Sistema Brasileiro de Inteligência, ativar colegas da Abin.
CC: O senhor acha que o Paulo Lacerda saiu da PF por causa deste caso?
PQ: Não sei, há um conjunto de coisas a serem analisadas. Sei que isso é um caso muito pesado. O Dantas conseguiu penetrar e levar muita gente para dentro do lodo financeiro que ele montou, de fraudes, praticamente desde o governo Fernando Henrique Cardoso até o do presidente Lula, inclusive alguns partidos políticos.
CC: O uso de servidores da Abin foi legal?
PQ: Solicitei aos colegas ajuda com base no que a lei permite. E qual lei? Está aqui (pega uma pasta preta de couro, retira um papel e lê em voz alta): “Decreto 4.476, de 13 de setembro de 2002, que dispõe sobre a organização e o funcionamento do Sistema Brasileiro de Inteligência, instituído pela Lei 9.883, de 1999”. Então, tem um parágrafo aqui muito claro: “O Sistema Brasileiro é responsável pelo processo de obtenção e análise de dados, pela produção e difusão de conhecimento necessário ao processo decisório do Poder Executivo, em especial no tocante à segurança da sociedade”. Isso é coleta de dados que essas pessoas (os agentes) fazem na rua, por meio de máquina fotográfica, filmadora, ou até mesmo vigilância visual. Também coletas de dados em fontes abertas, coleta de dados para complemento de análise de outros dados. Eles podem fazer isso, a lei permite. Fazem parte do Sistema o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública, a Polícia Rodoviária Federal e a Coordenação de Inteligência (atual DIP) da Polícia Federal. E eu sou integrante da DIP.
CC: O deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente da CPI dos Grampos e ex-delegado da PF, bate na tecla de que Paulo Lacerda não pode voltar a dirigir a Abin (ele foi afastado sob a acusação de ter participado de um grampo ilegal no STF) também por ter cedido mais de 50 agentes ao senhor.
PQ: Não trabalhei com 50 o tempo todo. Quem passou essa informação para a imprensa passou de forma deturpada. Foram 50? Bota os 50 na minha frente e pergunta se eles me conhecem. Vão falar que não, garanto. Eu fazia pedido por demandas. Por exemplo, eu queria uma vigilância em São Paulo, a Abin mandava quatro pessoas, e a cada 15 dias as equipes se revezavam. Eu até reclamava, porque a cada revezamento tinha que explicar novamente os detalhes da operação. Mas era uma rotina deles, eu estava recebendo a ajuda, não iria questionar. Então, não havia 50 funcionários trabalhando o tempo todo, diuturnamente.
CC: Quantos servidores da Abin participaram da Satiagraha?
PQ: Eram dez, ao todo. Eu tinha dois em Brasília, quatro em São Paulo e quatro no Rio de Janeiro. E foi uma dificuldade, porque eles não atendiam a todas as demandas solicitadas, que eram muitas.
CC: O seu chefe direto na DIP, o delegado Daniel Lorenz, sabia sobre essa solicitação de pessoal junto à Abin?
PQ: Sim, sabia. Na primeira semana em que dois colegas da Abin apareceram na PF, ele logo identificou um deles, com quem tinha feito um curso de antiterrorismo. Mesmo assim, ele me chamou e me criticou por ter colocado o agente dentro da minha sala, que ficava em frente à dele. Eu expliquei que eram pessoas que estavam me ajudando porque havia necessidade. Aí ele ficou um pouco preocupado, porque percebeu que eu estava suprindo aquela necessidade. Ele teria que ter me elogiado, porque eu estava superando um obstáculo. Passei a ficar mais atento.
CC: Não havia alvos demais na Satiagraha?
PQ: Havia sentido em investigar todas aquelas pessoas. E em pedir as prisões. O Pitta (Celso, ex-prefeito de São Paulo), investigado em outros casos, acabou aparecendo também neste.
CC: Por que o senhor se preocupou, especificamente, em investigar a participação de gente da imprensa no esquema criminoso de Daniel Dantas?
PQ: Eu sabia que, a partir da execução da Operação Satiagraha, viriam notícias para proteger o bandido. Por isso resolvi abrir um capítulo no meu relatório sobre o papel da mídia na investigação. Então, há vários jornalistas comprometidos com Daniel Dantas, de forma direta e indireta. Se eu não colocasse isso no papel, seria pior. Coloquei justamente para a própria imprensa ter a decência de discutir o processo sob o plano da ética e da moral. Hoje, a imprensa já encontrou o seu caminho. Alguns jornais passaram a discutir isso internamente, que eu sei, fui informado. O furo de reportagem é válido, mas nem sempre o timing da imprensa é o timing da polícia. Se puder conciliar as duas coisas, magnífico. Mas na maioria das vezes não é possível, e o prejuízo para a sociedade e para o País é muito grande.
CC: Havia mesmo uma espécie de “Sistema Dantas de Comunicação”, como apelidou o jornalista Paulo Henrique Amorim?
PQ: Havia, sim, em quase todos os jornais e revistas daqui e até no exterior. Eu me espantei, fiquei assustado, porque era uma coisa que eu jamais poderia imaginar, que uma pessoa teria o poder de manipular a mídia do Brasil. Levei logo o assunto ao conhecimento do procurador (Rodrigo de Grandis, do Ministério Público Federal de São Paulo) e ao juiz (Fausto De Sanctis, da Justiça Federal de São Paulo). Aquilo me causou uma repulsa muito grande e, no decorrer da investigação, isso foi se aprofundando a tal ponto que eu percebi que grandes veículos de comunicação estavam nas mãos do Dantas. Não as empresas todas, mas determinados jornalistas que fabricavam matérias para facilitar os negócios de Dantas, no presente e no futuro. Isso era uma coisa diária, a relação dele com esses jornalistas. Quando o interroguei, até disse a ele que ele seria mais feliz se comprasse um jornal ou uma rede de televisão, porque, como banqueiro, ele não é uma pessoa feliz.
CC: Nesse mesmo interrogatório, é procedente a informação de que Daniel Dantas ameaçou contar tudo o que sabia?
PQ: É verdade, sim. Ele colocava isso em tom de ameaça, para que aquela declaração vazasse e as pessoas se amedrontassem, como se amedrontaram. Depois, na CPI, ele mentiu, disse que eu iria investigar o filho do Lula. Até porque o filho do presidente não aparece na investigação, e, mesmo que aparecesse, não falaria isso com ele.
CC: Caso não tivesse havido o vazamento pela Folha de S.Paulo, a Satiagraha teria sido deflagrada quando?
PQ: Ainda estaria em andamento. Minha perspectiva era a de deflagrar a Satiagraha depois das eleições municipais de 2008. Ela seria muito mais rica, mais consistente e o País ganharia mais.
CC: Recentemente, o professor Hugo Chicaroni, acusado de tentar corromper um delegado da Satiagraha em nome de Dantas, mudou o depoimento na Justiça e disse ter sido procurado pelo senhor com um pedido de propina. O senhor chegou a procurá-lo?
PQ: Nunca procurei o Chicaroni, isso foi Daniel Dantas que criou por meio da imprensa. No depoimento do Chicaroni, quando fui ouvido como testemunha, ele fez questão de dizer, na frente do juiz Fausto De Sanctis, que jamais tinha me procurado, que eu era um delegado honesto, acima de qualquer suspeita, que eu era incorruptível, e que por isso jamais me faria uma proposta dessas. Isto está nos autos. Ele prestou um depoimento na Polícia Federal nesse sentido, mas depois mudou o que disse judicialmente, porque foi cooptado. Mas o que ele fala na Justiça agora não se sustenta, contrapõe-se a todas as provas que temos de uma ação controlada (um delegado da PF aceitou ser subornado, com autorização do juiz, para flagrar os criminosos), por si só, uma prova irrefutável. A ação controlada foi uma maneira de reverter o prejuízo causado pelo vazamento da operação.
CC: O senhor tinha noção de que acabaria sendo afastado da investigação?
PQ: Eu tinha consciência de que viria um poder avassalador contra mim e contra a minha equipe, contra as pessoas ligadas a mim. O meu afastamento já estava planejado, assim como está planejado o afastamento do juiz De Sanctis e do procurador De Grandis.
CC: O senhor ainda pode voltar a participar do inquérito?
PQ: Isso é uma hipótese muito remota. O meu desejo é voltar para a Polícia Federal e voltar a investigar. Mas não sei se vou ter espaço para isso, porque tenho plena certeza de que, nesta atual administração da PF, isso será muito difícil de acontecer. Mas sou servidor público, tenho de voltar. Por enquanto, continuo lotado na Diretoria de Inteligência.
CC: Depois do vazamento na Folha de S.Paulo, o senhor escolheu o dia 8 de julho para deflagrar a Satiagraha por alguma razão específica?
PQ: Deflagrei naquele momento porque a pressão dos advogados de Dantas era muito forte, eles impetraram habeas corpus, uns atrás dos outros. Colocaram séqüitos de advogados nos fóruns de São Paulo e de Brasília, além de muita gente do governo no circuito.
CC: O fato de o senhor ter interceptado uma ligação do ex-deputado Luiz Eduardo Greenhalgh para o chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, trouxe-lhe algum constrangimento no governo?
PQ: O que foi interceptado foi o telefone do bandido, mas, se o chefe de gabinete ligou para o bandido, a Polícia Federal não tem culpa. Como é que vou impedir um negócio desses? Se eu tentar impedir, vou estar praticando um crime.
CC: Qual o futuro da Operação Satiagraha?
PQ: A operação, pelo que sei, segue num ritmo lento, com muita dificuldade operacional. Mas houve duas ações importantes que foram praticadas pelo Ministério Público Federal, os bloqueios de recursos do Dantas. Mas faço votos de que os colegas que hoje estão à frente da investigação a concluam o mais brevemente possível para dar uma satisfação à sociedade. O País vai exigir o resultado. E Daniel Dantas vai ser condenado, uma condenação pesada, porque conheço o doutor Fausto, conheço a capacidade técnica dele e o conhecimento que ele tem do caso. Sei que ele vai dar uma sentença à altura do que a sociedade está esperando.
CC: O que o senhor achou da tentativa de incluir a Satiagraha, o seu nome e o do delegado Paulo Lacerda nessa história do suposto grampo feito no STF?
PQ: Foi uma situação prematura, onde se deu credibilidade a uma falsa notícia de uma revista comprometida com Daniel Dantas. A revista fabricou um escândalo envolvendo duas pessoas importantes da República, o presidente do Supremo Federal e um senador, Demóstenes Torres (DEM-GO). Mas o que mais me espantou foi o fato de essas duas figuras, Mendes e Torres, terem dado credibilidade a essa mentira, a uma reportagem montada. Cadê o áudio? Desde o primeiro momento eu perguntei isso. Até para um leigo foi possível perceber que aquilo ali era uma coisa inidônea. Ainda mais para dois profissionais do Direito (o senador Torres foi procurador-geral de Justiça de Goiás).
CC: O que o senhor acha da atuação do deputado Marcelo Itagiba na CPI dos Grampos?
PQ: Olha, é uma CPI para investigar grampos clandestinos em nível nacional. Mas o foco da CPI agora é o caso Daniel Dantas. E o caso Daniel Dantas não teve interceptação clandestina. A Operação Satiagraha só teve interceptações autorizadas judicialmente. Ele tinha que chamar todo o grupo do Opportunity para a CPI, porque o Dantas está denunciado por grampo clandestino, por conta da Operação Chacal. Tinha que chamar também os diretores da Kroll para dar esclarecimento. Mas ele chama quem investigou o Dantas. Mas a sociedade percebe. Hoje, neste assunto, não tem analfabeto no País.
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