A eleição de um presidente negro nos EUA ainda pode funcionar como convite ao país para rever regras eleitorais antidemocráticas e cacoetes racistas herdados da velha Confederação do sul. Socorreria, assim, a imagem desacreditada do país que se apresentava ao mundo como modelo democrático - imagem desmentida durante tanto tempo pelo racismo e ultimamente também pelo belicismo bushista.
Quando o presidente George W. Bush chegou à Casa Branca, depois de perder a votação popular no país e ser beneficiado no Colégio Eleitoral pelo roubo de votos na Flórida, governada pelo irmão Jeb Bush, implodiu de vez aquela imagem. Em oito anos, com guerras reais (Iraque, Afeganistão) e imaginárias (ao terrorismo), ele agrediu as liberdades civis, favoreceu e terceirizou a tortura, criou os pesadelos de Guantânamo e Abu Ghrabi.
Já que a derrota esmagadora nas urnas em 2008 extremou o repúdio, dentro e fora dos EUA, a tal desatino, à obsessão neoconservadora de controlar o petróleo alheio e à fracassada política desregulamentadora que produziu uma crise financeira disseminada pelo mundo inteiro, é oportuna ainda a revisão também de outros equívocos históricos que o país tem insistido em subestimar.
À sombra da escravidão negra
Independentemente da resposta internacional - que também terá de vir, em especial no campo econômico e comercial - os EUA podem fazer o dever de casa com o esforço para remendar a própria imagem. A começar por uma reforma capaz de tornar de fato democráticas as regras de sua eleição presidencial, já que as dos fundadores da república nasceram sob a má influência da escravidão negra.
Criou-se há mais de dois séculos - e prevalece até hoje - um Colégio Eleitoral que se reúne em cada um dos estados (hoje, 50) e no Distrito de Columbia para escolher formalmente o presidente do país (saiba mais sobre o Colégio Eleitoral AQUI e AQUI). É o que acontecerá no dia 15 do próximo mês de dezembro. Desta vez, por acaso, ele deve ratificar a escolha feita pelos milhões de eleitores que foram às urnas em número recorde. Mas não tem sido sempre assim.
Pelo menos quatro vezes na história do país a escolha do Colégio Eleitoral não coincidiu com a que tinha sido feita na votação popular. A última vez em que isso aconteceu foi em 2000 - quando, por uma diferença de meio milhão de votos, os eleitores tinham dado a vitória a Al Gore mas a maioria daquele Colégio, obsoleto e antidemocrático, ficou para o adversário dele, George W. Bush (veja acima a foto de um dos debates entre eles).
O detalhe sórdido em relação a esse processo eleitoral duvidoso é que a própria sobrevivência do sistema antiquado só pode ser atribuída a tradição, sentimentalismo ou nostalgia. Ao ser criado, ele não se deveu a razões sólidas e respeitáveis. O motivo principal, ao contrário, foi a existência da escravidão negra em alguns dos estados participantes da convenção que aprovou a Constituição.
O peso dos escravos no Colégio Eleitoral
Os estados do sul queriam que seus escravos, aos quais obviamente não era dado o direito de votar, fossem contados para ampliar o peso na repartição dos votos eleitorais dos estados. No cálculo então estabelecido, cada escravo equivalia a três quintos de uma pessoa branca. Conta talvez generosa para um racista, mas apenas porque isso aumentava o poder do dono de escravos e, claro, o peso do estado em votos eleitorais.
É verdade que os fundadores consideraram ainda, no debate do processo eleitoral, a dificuldade na época de se ter informações sobre a capacidade dos candidatos presidenciais. Em geral as pessoas conheciam os nomes locais de candidatos a cargos de aldeias, cidades e condados do estado. O Colégio, com eleitores mais qualificados, fazia algum sentido para melhor avaliação de um candidato à presidência.
Mas nem essa razão acessória justifica manter hoje o Colégio Eleitoral, receita potencial de crise. Pois o processo inclui ainda outra regra antidemocrática - a que manda dar todos os votos eleitorais ao candidato que vence num estado. Significa isso que depois da votação são automaticamente anulados todos os votos dados ao derrotado, mesmo que ele tenha recebido até 49,9% da votação. Isso cria distorções insanáveis, até por supervalorizar estados indefinidos, ainda que menos relevantes.
Até quem acha ter Bush, em 2000, derrotado de fato o rival Al Gore na Flórida por 517 votos de vantagem, conforme a contagem suspeita mas oficializada por Katherine Harris, sabe que na votação popular do país Gore ganhou por meio milhão. Será possível defender como democrático ou legítimo tal resultado? Claro que não. Mas é essa a regra em vigor no país que se oferece como exemplo de democracia.
Também uma correção histórica
Resta lembrar ainda a conveniência de mais correções no legado dos pais fundadores. A Constituição deles, ao contrário do que acham alguns, foi marcada por falhas - por ter resultado de compromissos quase impossíveis, às vezes entre posições opostas. A sangrenta guerra civil, sete décadas depois, resultou disso. Decidido a manter a escravidão o sul racista considerou violados os “direitos dos estados”.
Derrotados, os rebeldes sulistas (”Estados Confederados da América”) passaram a viver o controvertido período da Reconstrução, demonizado até hoje em livros de História dos EUA - da mesma forma como também são demonizados abolicionistas como John Brown (foto à esquerda, feita em 1859, ano em que foi enforcado), que alguns historiadores preferem retratar como louco sedento de sangue por libertar escravos no sul usando armas (saiba mais sobre ele AQUI).
Apenas uma década depois da vitória da União sobre o racismo confederado, o impasse de quatro meses em torno da duplicidade de resultados em estados do sul na eleição presidencial de 1876 levou o candidato democrata Rutherford Hayes, para tornar-se presidente, a fazer conchavo com líderes políticos do sul, num tempo em que se glorificava ali os crimes nefandos da Ku Klux Klan - como o linchamento de negros.
De volta ao poder, a velha elite branca pode então restabelecer a segregação racial por mais um século - até as leis de direitos civis e direito de voto do negro, em 1964-65. O sul dos EUA, além disso, tornou-se um conjunto de estados de partido único, como a URSS de Josef Stalin. Segregados e sem direitos, só restava aos negros tentar a fuga para o norte ou correrem o risco do linchamento sob qualquer pretexto.
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