domingo, 15 de junho de 2008

Prezado Sr. Stálin - por Elias Thomé Saliba (Estadão)

Bastidores da batalha diplomática

Prezado Sr. Stálin, de Susan Butler, revela algumas das cenas mais inusitadas da política do século 20




Quem diria que Stálin foi agraciado com o título de 'homem do ano' de 1942, ganhando foto de capa e manchete de 'salvador do mundo ocidental' na revista Time? E que a repentina morte de Franklin Roosevelt, três anos depois, provocaria enorme comoção em Moscou, com uma multidão dirigindo-se para a embaixada americana, homenageando o falecido como um 'grande amigo da Rússia e da paz'? Varridas da memória pelo ambiente pesado da Guerra Fria pós-1945, essas são, entre muitas outras, algumas das cenas mais inusitadas da história do século 20, que certamente invadem a lembrança coletiva após a leitura da correspondência entre Roosevelt e Stálin, organizadas e editadas por Susan Butler.

Escritas entre 1941 (ano do ataque alemão à Rússia) e 1945 (ano da morte de Roosevelt), transmitidas por cabo ou entregues pessoalmente por diplomatas de estrita confiança dos dois governantes, são mais de 300 cartas, extremamente reveladoras da intensa batalha diplomática ocorrida nos bastidores da 2ª Guerra. Bem guardadas pelo sigilo oficial, propositalmente obscurecidas por alfinetarem orgulhos inflados de russos e americanos ou solenemente ignoradas pelos caprichos da memória política - elas retornam agora, quase 60 anos depois, devidamente anotadas, contextualizadas e minimamente preservadas em sua autenticidade no livro Prezado Sr. Stálin . Apesar de todos os protocolos diplomáticos, mensagens cifradas ou parafraseadas por inúmeros mediadores (inevitáveis em tempos de guerra), as cartas foram realmente escritas pelos dois líderes.

Suficientemente realista para confiar em certos momentos e desconfiar noutras ocasiões, Roosevelt revela escrita de estilo ágil, sereno, discernindo caminhos conciliadores - sem, contudo, esconder de Stálin os obstáculos e oposições internas às suas decisões, tanto dos republicanos quanto dos 'isolacionistas'. Já Stálin, descontados os problemas da tradução (a organizadora manteve os erros para mostrar como exatamente Roosevelt leu as cartas), não consegue esconder seu estilo deselegante, truncado - embora meticuloso e preciso apenas nos detalhes de manobras e estratégias militares. Só muito raramente a propalada incontinência verbal de Stálin irrompe nas cartas, quando numa delas - ao insistir com Roosevelt na necessidade urgente do envio de mais aviões - desabafa, em tom quase farsesco: 'A situação singular da aviação soviética é a de dispor de um número mais do que suficiente de pilotos, mas não de aviões!'

Nem sempre foi fácil suportar as interpelações raivosas e duras de Stálin. Churchill só atirava mais lenha na fogueira, provocando: 'O que se pode esperar de um urso senão um rugido?' O próprio Roosevelt perdeu a paciência em novembro de 1944, ao discutir a situação do governo polonês no exílio, embora tenha levado apenas uma semana para recuperar o equilíbrio, mostrando-se devidamente contido já na próxima carta, quando cumprimenta Stálin pelo 26º aniversário do Exército Vermelho. A resposta é extremamente cordial, mas apenas protocolar, pois se sabe que foi precisamente nesta época que Stálin teria dito nos bastidores que 'a gratidão é uma doença dos cães'.

De qualquer forma, as cartas de Stálin, reforçam o ácido comentário de Clement Atlee quando dizia que o ditador desprezava profundamente a linguagem floreada: 'Com Stálin, é sempre um sim ou um não, embora só se possa acreditar nele quando diz não.' As cartas evidenciam ainda quanto a União Soviética precisava urgentemente de toda a ajuda que pudesse obter e, para isso, não interessava fomentar antagonismos com os Estados Unidos. O presidente norte-americano e o ditador nunca estiveram tão próximos: encontraram-se apenas por duas vezes, em Teerã, em novembro de 1943 e em Ialta, em fevereiro de 1945, mas as cartas revelam uma inusitada sintonia entre os dois, que se vislumbra nas pitorescas jogadas de Roosevelt (na organização das duas conferências), para ficar próximo a Stálin, livrando-se das excessivas exigências (e da verborragia) de Churchill - ou usando a personalidade deste último como parte do jogo diplomático.

No geral, é uma correspondência que nada acrescenta nem altera a história da 2ª Guerra. Fornece, contudo, novos ângulos de visão e outras perspectivas, nem sempre agradáveis à nossa amnésia histórica. De material bélico pesado a alimentos e vestuário, as cartas adicionam detalhes espantosos a respeito da enorme ajuda material que Roosevelt conseguiu liberar para a União Soviética derrotar a Alemanha. Muitos viram nesse tópico apenas um resquício da atitude amplamente favorável de Roosevelt em relação à URSS, interpretada, não raro, como ingenuidade de alguém que foi vítima das próprias ilusões. Mas existiram outras alternativas? Algumas cartas deixam clara a decepção de Roosevelt com os acordos de Ialta. Ele sabia, no fundo, que esses nada valeriam, pois o delineamento da Europa do pós-guerra seria determinado não por acordos, mas pela localização real dos Exércitos ocupantes quando da rendição alemã. Entre as muitas crueldades inenarráveis da guerra, o nó diplomático mais delicado foi quando Roosevelt praticamente ignorou o assassinato de mais de 20 mil oficiais poloneses na floresta de Katyn - os quais (depois se descobriu) foram mortos não pelos alemães, mas pelos russos da NKVD.

Por outro lado, Roosevelt mantém no seu horizonte uma noção muito clara de que o espectro de uma aliança germano-soviética ainda era muito recente. Embora cruel e frustrante foi imperioso deixar Stálin com as mãos livres no Leste Europeu, pois a URSS tinha de ser mantida, a qualquer custo, na guerra contra a Alemanha e, mais tarde, contra o Japão. Não foram poucos os biógrafos que 'medicalizaram' a hesitação melancólica de Roosevelt, atribuindo-a à hipertensão, sinusite, bronquite, arteriosclerose, isquemia temporária, além, é óbvio, da semiparalisia decorrente da poliomielite. Mas é muita fisiologia para pouco espírito. Contrariando tais presunções, as cartas revelam que a resignação e a tristeza vinham da dura constatação de que qualquer diálogo com Stálin seria impossível sem uma atenuação - quando não um esquecimento doloroso - das crueldades, genocídios, hostilidades ou suspeitas mútuas.

Schlesinger Jr. argumenta que Roosevelt conseguiu, apesar de tudo, estabelecer padrões para a Europa Oriental, enquadrando Stálin e obrigando-o a romper com o acordo de Ialta para consolidar as posições soviéticas. Foi pouco, mas melhor que nada. Roy Jenkins também argumenta na mesma direção, afirmando que Roosevelt não 'deu' nada a Stálin que ele já não possuísse através da ocupação militar. Com algumas objeções, Isaiah Berlim acompanha o mesmo diagnóstico, enfatizando, nesse sentido, que Roosevelt conseguiu atuar como um farol iluminando o futuro. Para além dos intérpretes, as cartas revelam que Roosevelt conseguiu manter sempre o diálogo e que Stálin nutria uma velada admiração pelo presidente americano. Conseguiu até mesmo que o seu interlocutor aceitasse o tratamento brincalhão, ao chamar Josef Stálin de 'Tio Joe'.

Menos de dez dias depois da morte de Roosevelt, o embaixador russo, Vyacheslav Molotov (que era para Stálin o que Harry Hopkins era para Roosevelt), já seria destratado por Harry Truman: 'Ninguém jamais falou assim comigo', reclamou Molotov; 'cumpra sua palavra e não o tratarei desta maneira', rebateu Truman. Esse diálogo seria inconcebível na presença de Roosevelt. O restante da história é bem conhecido: quatro meses depois da morte de Roosevelt vieram as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki - e as cinzas da Guerra Fria manietaram o diálogo e calcinaram as mentes.

Se Roosevelt tivesse vivido pelo menos até o fim do seu mandato, a história seria diferente? O condicional - também chamado pelos historiadores de raciocínio contrafactual - é quase um tabu na lógica histórica e, quando mal conduzido, resulta pernicioso e impertinente. Mas a leitura das cartas fornece perspectivas inquietantes, a respeito das quais cabe ao leitor decidir. 'Durante mais de 60 anos - escreveu E.J. Hobsbawm -, eu e Arthur Schlesinger Jr. não concordamos sobre nenhum assunto, a não ser este: eu compartilhava - e ainda compartilho - de sua admiração por Franklin D. Roosevelt.' E se um personagem tão controverso suscitou a admiração de dois historiadores tão diferentes, é quase certo que ele possuía algum quilate daquela rara grandeza. O que, nos dias de hoje, não é pouca coisa.

Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de Raízes do Riso: A Representação Humorística da História Brasileira.


Comentário: A capa da Time do "homem do ano" de 1942, "salvador do mundo ocidental", conseguida no blog do Luis Nassif:

Um comentário:

fernandes disse...

Esse professor não gosta nada do Stálin, dá pra perceber.
E na verdade, Roosevelt chamava Stálin de Tio José apenas quando conversava com Churchill.
O professor leu e não prestou atenção.