quinta-feira, 27 de junho de 2013

Um adeus à Polícia Federal – por Rafael Guedes (FENAPEF)

Desde muito se discute se esse modelo de segurança pública, especificamente na esfera federal, é o “correto” ou “mais eficiente”. As disputas entre os cargos da Polícia Federal chega a ter uma face medonha, que ultrapassa os temas de atribuições e salariais, chegando até o nível pessoal.

Os delegados argumentam que um cargo só deva conduzir as investigações, e que todos os outros devem auxiliá-lo nessa empreitada. Quando confrontados com o argumento de que o legislador constitucional deu tratamento especial e diferenciado ao remeter à estrutura da Polícia Federal (ver atr. 144 da CF que diz que a Polícia Federal é estruturada em Carreira, no singular), tentando aproximá-la do modelo norte-americano do FBI, os delegados desconversam ou dizem que no FBI também uma carreira só investiga e as outras a auxiliam.

Quando confrontados com os números da ineficiência do Inquérito Policial e sua dispensabilidade, dizem que a legislação e normas (ou as “regras”) do Brasil são assim e que em muitos países é até elogiado esse modelo brasileiro (embora eu particularmente nunca tenha visto tal tipo de elogio).

Quando confrontados com a ideia de carreira única, dizem que nem todos podem ser “caciques”, que tem que ter quem manda e quem é mandado.

O problema central é exatamente esse. O responsável pela investigação NUNCA deveria repassar sua responsabilidade para um terceiro.

Explico.

No modelo americano do FBI, realmente são os Special Agents (não vou nem debater nomenclatura dos cargos entre português e inglês) os maiores responsáveis pela investigação federal e existem outros cargos que os auxiliam. Só que são cargos de outras carreiras, e auxiliam no sentido técnico do termo. São, entre outras, perícias, exames laboratoriais e operações táticas ostensivas, trabalhos pontuais que permeiam a investigação e a complementam. É só entrar no próprio site do FBI (http://www.fbi.gov/) que se vê claramente as diferentes carreiras do órgão e como as atribuições diferem.

Nenhum Special Agent determina, ordena ou requisita que outro cargo faça a investigação para ele. É ele mesmo que vai para as ruas e realiza a diligência. A requisição que faz a outros cargos é referente a questões técnicas que ele não tem atribuição ou conhecimento para realizar.

E é por isso que o modelo brasileiro é tão falho e ineficiente. O policial que realmente tem contato com a investigação de rua não é o responsável pela mesma. Pior, o responsável pela investigação não vai às ruas investigar. Ele elabora o relatório baseado no que ouve e lê de terceiros. Seu contato com a investigação chega a ser mais superficial que do agente que realmente a realiza. Salvo raras exceções, o responsável não vai fazer vigilância, não faz a interceptação telefônica, não vai até a casa e conhece os arredores da vizinhança do alvo, não observa os trejeitos e hábitos do alvo, não conhece o tipo de relação que ele tem com outras pessoas, nem detalhes de sua vida pessoal.

Ele recebe esses dados prontos e faz o esforço de estabelecer o nexo entre eles, porém não tem o contato necessário para perceber todos os detalhes. Daí sua superficialidade. No momento de realizar o relatório do inquérito, muitos detalhes importantes são perdidos ou passados despercebidos porque o responsável não esteve presente para notar essas nuanças e avaliar sua importância na apuração. Seu conhecimento da investigação nunca será pleno e, logo, nunca superará d e forma relevante o índice de cerca de 5% de solução (sim, apenas 5% dos inquéritos levam a processos penais).

E por quê? Qual o motivo da falta de interesse em ir atrás pessoalmente dessas informações, como os Special Agents fazem?

Talvez a explicação esteja no fato de que a maioria dos delegados estão tão sedentos em poder mandar que se contentam apenas com isso. Mandam outros realizarem a investigação. Numa ânsia de serem como Juízes, procuram insistentemente uma carreira jurídica exatamente para poderem se desprender do trabalho policial sem perder o status de “ser polícia”; um tipo de polícia exótica em que o trabalho policial em si é realizado por outro. Muito diferente dos Special Agents que estão sempre em campo realizando as diligências.

Isso pode ser observado no fato de que diversos delegados constantemente realizam concursos para Juízes e Procuradores. Logicamente não se pode dizer que o trabalho desses cargos se reduz a isso, ou que essa é a intenção de todos os delegados; e evidentemente o subsídio mais alto é um atrativo. Inclusive esse é um fato observado em muitos colegas ex-Agentes que realizam o concurso de delegado: querem ser polícia recebendo mais. Claro, quem não quer? Porém é também fato que vários assimilam essa ideologia de almejarem trajetórias nos moldes dos citados Juízes e Procuradores e “mandarem” mais.

Vale lembrar que esses citados cargos exigem em seu processo seletivo experiência na área de atuação, coisa que inexiste no concurso de delegado. E realmente não precisa existir, desde que o investigador aprenda a fazer o seu trabalho nas ruas e não apenas no gabinete.

Em qualquer modelo eficiente de polícia, o policial aprende a ser policial nas ruas e sua experiência é o principal recurso humano que ele tem. Quer ser o responsável pela investigação? Louvável, eu aplaudo, mas seja inteiramente responsável e faça o “trabalho braçal” também, pois é ele que o qualifica como policial. Se o policial investiga e o Ministério Público denuncia, então é hora de assumir a responsabilidade e dar cabo da investigação em todos os seus aspectos.

Mas também já ouvi delegados dizerem: “são muitos IPLs, não dá pra aprofundar em todos”. Realmente não dá se cada vez mais existir essa intermediação. Se todo policial de todos os cargos fosse responsável por um número determinado de investigações, isso seria possível. É assim que funciona em outros modelos mais eficientes: o policial recebe a denúncia do superior e realiza a investigação. É matemática simples: é muito mais eficiente 20.000 policiais dividirem 100.000 investigações que 2.000 pegarem as mesmas 100.000 e colocarem os outros 18.000 para auxiliá-los. A resposta não é aumentar quem manda os outros fazerem, é colocar todos para fazer.

Isso leva a outra questão: com certeza nenhum Special Agent novato entra mandando em nenhum outro cargo de investigação. O modelo correto, e lógico até, é o novato entrar e aprender o trabalho com o mais antigo, que servirá de tutor do novato.

E novamente, no exemplo do FBI, não é um Intelligence Analyst que vai ensinar o Special Agent, mas sim um Special Agent mais antigo. Se dois cargos fazem o mesmo trabalho, ou o “auxiliar” tem que ensinar os detalhes importantes esse trabalho, então há algo errado com a estrutura.

No DPF, infelizmente, isso acontece com muita freqüência, especialmente em lugares onde a rotatividade dos servidores é alta. Quantas vezes o Delegado novato tem que perguntar ao Agente antigo, com experiência na área, qual sua sugestão, o que ele acha que deveria ser feito. Quantas vezes chega a perguntar “onde que eu assino”, ou “o que eu escrevo aqui” em procedimentos de Polícia Administrativa. É incabível pensar que o Delegado novato tem qualquer tipo de capacitação (excluindo-se, claro, conhecimentos prévios específicos) que o qualifique para conhecer mais sobre determinado crime que um Agente experiente, que está há anos trabalhando nessa linha de investigação. E ainda assim, esses novatos se consideram superiores hierárquicos e insistem em chamar os outros de auxiliares a ponto de acharem inadmissível que um Agente experiente seja mais bem remunerado que um Delegado novato, embora os dois cargos sejam de nível superior e tenham o mesmo tempo de academia.

Claro, os delegados dirão que o Agente nunca faz tudo que o Delegado faz, mas o contrário sim, afinal o IPL é cheio de detalhes burocráticos e formalidades legais que apenas os Delegados podem cumprir. Mas para que? Se podem fazer tudo que o Agente faz, então por que não o fazem? Por que tem que ordenar que outro faça o trabalho de fato para ele e apenas reúne as informações e as compila? Por que não seguir a tendência mundial que se mostra mais eficaz? Que tipo de policial é esse que prefere não fazer o trabalho realmente policial?


Outro tópico correlato que é bizarro na estrutura da Polícia Federal: qual a explicação para um servidor formado em Direito ser mais indicado para assumir uma chefia de uma Diretoria de Logística ou de Gestão de Pessoal que um formado em Administração? Que um formado em Comunicação Social para ser chefe da Divisão de Comunicação Social? Que um formado em Psicologia para ser chefe de Recursos Humanos? Que um formado em Relações Internacionais para ser chefe da Coordenação de Cooperação Internacional?! Que um formado em Sistemas de Informação para ser chefe da Coordenação de Tecnologia da Informação????!!!! Todas essas chefias são ocupadas por Delegados, os quais nitidamente não possuem as mesmas qualificações citadas acima (novamente salvo raras exceções). Defendem com unhas e dentes a manutenção do sistema inquisitório do IPL e vários estão desviados dessa função.

Infelizmente só consigo enxergar o motivo explicitado acima para justificar tudo isso: a sede de poder mandar. Enquanto os responsáveis pela investigação criminal pensarem assim, o modelo brasileiro e a estrutura da Polícia Federal continuarão a ser ineficientes.

Sei que existem Delegados que discordam do modelo atual e também gostariam que as coisas fossem diferentes ou que ao menos dão o melhor de si para serem os mais eficientes possíveis dados a estrutura e o sistema. Porém, tristemente, são a minúscula minoria.

Sempre busquei o DPF com uma visão muito diferente da que tenho hoje, uma primeira visão bem mais otimista e até ingênua. E em pouco tempo, meu ímpeto e esperanças referente ao órgão, ao trabalho e ao sistema forem esmorecendo a ponto de quase serem obliterados. E isso me deixa com muito pesar, pois sempre sonhei em ser Policial Federal e contribuir para a segurança pública do país.

Porém, sinto que chega próxima a hora de procurar outra carreira; uma em que as coisas façam um pouco mais de sentido.



Comentário

É um debate interessantíssimo que tem que ser posto na mesa urgentemente. A forma como as polícias se estruturam no Brasil é uma piada.

A PEC 37, já rejeitada pelo congresso, não interferia no que de fato seria essencial (nem pro bem, nem pro mal), pois é na estruturação das polícias que esta o nó górdio da grave crise de segurança pública que o Brasil enfrenta. (Aliás, faço uma digressão no sentido de propor uma reflexão: será mesmo que vivemos uma crise na segurança pública? Crise pressupõe transitoriedade - o que não é, definitivamente, o caso).


Outro ponto, os delegados querem receber como promotores. Assim como os professores de universidades federais querem receber como pesquisadores, é natural, a luta por melhoria salarial é de praxe dentre os trabalhadores.
Porém, duas coisas devem ser consideradas a este respeito.
A primeira é a total discrepância entre os salários dos membros do poder judiciário com os do restante do funcionalismo público brasileiro.
O que é de lastimar, pois, o judiciário é justamente o poder mais fechado, mais conservador, não prestam contas a ninguém (como o próprio atual presidente do STF disse literalmente) – e tem uma eficiência péssima. Como recebem bem mais que os outros poderes, era de se esperar que dessem um retorno adequado a sociedade. Não o fazem, muito ao contrário.

A segunda é a discrepância entre a remuneração do funcionalismo público em geral, com aquilo que o próprio estado considera como o salário necessário para a subsistência (salário mínimo).
Esta diferença, convenhamos, é um (outro tipo de) escândalo.

Nenhum comentário: