sábado, 15 de junho de 2013

Dilma e a classe média – por Paulo Moreira de Leite (Istoé)

Obrigado a pagar por uma imensa fatia no bolo de impostos num país onde as grandes fortunas estão isentas de transtornos tributários, o cidadão de classe média faz sua parte na redistribuição de renda, mas não recebe o que lhe seria devido

Avaliando a primeira queda de Dilma Rousseff nas pesquisas de opinião desde a posse, Ricardo Mendonça avaliou, na Folha deste domingo:

“As maiores oscilações foram verificadas entre brasileiros que ganham mais de dez salários mínimos (queda de 24 pontos), entre os que têm ensino superior (16 pontos), moradores da região Sul (13 pontos) e pessoas que têm entre 25 e 34 anos (13 pontos).”

Com exceção dos jovens, estamos falando dos brasileiros de classe média, uma das grandes quimeras da política brasileira. São estes homens e mulheres situados na metade superior da pirâmide social brasileira que, segundo o Data Folha, estão se afastando de Dilma. A presidente continua como favorita à eleição de 2014, por larga margem. Seria reeleita, se o pleito fosse hoje. Tem índices de aprovação superiores aos de Lula e Fernando Henrique Cardoso no mesmo período.

Mas a vantagem não é a mesma, o que coloca a postura da classe média em discussão.

Há poucas semanas, a professora Marilena Chauí, mestre inesquecível da Filosofia da USP na década de 1970, uma das referências intelectuais da luta pela democratização do país, fez uma declaração que chamou a atenção. Disse a professora

"A classe média é uma abominação política porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é ignorante. Fim".

Essa visão da professora, com todo respeito que ela merece, é puro absurdo. Reflete uma visão filosófica da realidade, como se homens e mulheres se movimentassem movidos por ideias puras, e não em função de interesses e necessidades concretas. Traduzindo: a classe média pode até tornar-se fascista, pode aderir a métodos violentos e pode mostrar-se ignorante, mas não “é” fascista, não “é” ignorante nem “é” violenta.

Avaliando o comportamento da classe média europeia ao longo do século XX, em que ela deu apoio a movimentos fascistas mas também se engajou no apoio a soluções democráticas e socialistas, o historiador Tony Judt explica que o comportamento político da classe média não obedece a nenhuma causa especialmente maligna nem defeituosa. Como todas as outras classes sociais, seu comportamento se altera na medida em que seus interesses específicos são atendidos – ou desprezados – pelos governantes de plantão.

Recapitulando a formação do Estado de bem-estar social da Europa, com a criação de um serviço publico universal de qualidade, na saúde e na educação, Judt avalia que foi possível fazer uma troca aceitável com cidadãos de classe média.

Eles seguiam pagando impostos muito altos, mas tinham direito a um atendimento aceitável, gratuito ou muito barato, sendo dispensados de arcar com despesas muito maiores do que seria exigido num sistema privado.

Observando as consequências econômicas deste processo, Judt escreve em O Mal Ronda a Terra que a classe média se viu “com mais recursos disponíveis do que em qualquer outra época desde 1914.”

Essa situação contribuiu, é claro, para afastá-la da tentação do fascismo, que atraiu cidadãos de classe média – e também milhões de trabalhadores, Marilena Chauí! – que não encontravam uma resposta para o drama do desemprego e da falta de perspectiva.

Esta é a questão, portanto. Os brasileiros de classe média colheram diversos benefícios diretos e indiretos do crescimento econômico e da distribuição de renda da última década. A elevação geral do emprego e ampliação do mercado interno abriu oportunidades e vantagens para todos, e não só para quem recebe o Bolsa Família

Mas não se trata de um processo linear nem igual para todos. Obrigado a pagar por uma imensa fatia no bolo de impostos num país onde as grandes fortunas estão isentas de transtornos tributários, o cidadão de classe média faz sua parte na redistribuição de renda, mas não recebe o que lhe seria devido. O preço daqueles serviços que precisa comprar do próprio bolso – a escola dos filhos, o plano de saúde – cria uma situação de aperto e um sentimento de injustiça.

Vamos combinar. A qualidade dos serviços públicos segue tão precária que as autoridades sequer se constrangem de procurar caríssimos hospitais privados para tratar da própria saúde ou estabelecimentos particulares para educar filhos e netos.

Os protestos contra o aumento da passagem de ônibus, que tiveram participação imensa de jovens de classe média -- e também de famílias de trabalhadores --, são um retrato do problema.

Nesta situação, profissionais liberais de histórico progressista, pais de família dedicados e cidadãos responsáveis são cortejados por uma oposição política em busca de velhos argumentos. O impostômetro é uma demagogia republicana, nascida nas sonhos do Estado mínimo de Ronald Thatcher e Margaret Reagan, mas chama a atenção de quem não se sente retribuído pelo dinheiro que entrega ao Fisco.

Em outra operação no mesmo sentido, procura-se convencer a classe média de que ela possui princípios morais mais sólidos e respeitáveis do que o conjunto da população, criando uma diferença intransponível -- porque baseada no preconceito -- em relação à maioria dos brasileiros.

Num exercício que refletia decepção de tantos sábios com a reeleição de Lula em 2006, um ano depois do mensalão, procurou-se construir a lenda de que os cidadãos de maior renda têm maiores princípios morais. Mesmo desmentida por todas as pesquisas estatísticas sérias, que jamais registraram diferenças relevantes no plano dos valores entre classes sociais nem entre regiões do país, fez-se um esforço a fundo. Ora, a partir da renda. Ora, a partir de um traço ainda mais importante para quem dedica boa parte de sua renda a escola dos filhos, que é uma boa educação.

No best seller “A cabeça do brasileiro”, o antropólogo Alberto Carlos Almeida dividiu a população do país por níveis de educação – em vez de faixas de renda – e anunciou:

“Para a população de baixa escolaridade, que apoia a quebra de regras patrocinada pelo ‘jeitinho brasileiro’, há também uma tendência em mostrar-se tolerante com a corrupção.”

Conforme o professor, para muitas dessas pessoas, as denúncias “simplesmente não são importantes.”

Este é ponto.

Existe sim um esforço político para construir uma educação politicamente conservadora para a classe média. Procura-se estimular um comportamento egoísta do ponto de vista social.

Aquela fatia imensa dos meios de comunicação que se comporta como aparelhos ideológicos não deixa de contribuir nessa direção.

Essa operação será ou não bem sucedida – e terá maior ou menor impacto em 2014 – na medida em que o governo se mostrar capaz de ampliar respostas na construção de estado de bem-estar universal, gratuito ou muito barato.

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