Um dos principais estudiosos contemporâneos dos movimentos sociais na era da internet, o sociólogo espanhol Manuel Castells esteve em Porto Alegre na noite desta segunda-feira (10), onde promoveu uma palestra sobre o tema no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, no Salão de Atos da UFRGS. Durante uma hora, a língua serena e afiada do intelectual não poupou governos, partidos e organizações ao demonstrar que o atual modelo que entendemos como democrático está esgotado.
Manuel Castells pontua que as novas formas de manifestações — auto-convocadas e articuladas através das redes sociais — demandam uma nova forma de participação dos cidadãos nos processos de decisão do Estado. Ele observa que os atos sempre surgem através de uma emoção: a reação indignada diante de algo que parece injusto. A partir daí, os diversos sentimentos individuais unem-se pelas redes e ganham as ruas pela ocupação de espaços públicos urbanos.
Para o acadêmico espanhol, essa foi a dinâmica que desenvolveu e vem desenvolvendo protestos nos países árabes, na Espanha (com os indignados), nos Estados Unidos (com as ocupações) e, mais recentemente, na Turquia. “Depois da raiva provocada pela indignação, vem a emoção da solidariedade e de nos relacionarmos com os outros frente ao perigo (da repressão). Passar da indignação pessoal à ação coletiva é um processo de comunicação. Neste caso, de comunicação em rede, que é instantânea e transmite o local ao global”, explica.
O estudioso aponta outro papel relevante da internet para o fortalecimento deste tipo de mobilização: a divulgação veloz e abrangente de imagens da repressão policial que as pessoas sofrem ao ir para as ruas. “O detonante para (ampliar) esses movimentos foi a divulgação na internet de imagens da repressão. Ocorre um processo de identificação. E a transição da indignação à esperança ocorre após deliberações em espaços autônomos – tanto o virtual quanto o espaço público ocupado”, avalia.
Movimentos partem da rede para a ocupação do espaço público urbano
O sociólogo Manuel Castells traçou algumas características que considera comuns entre os movimentos sociais contemporâneos que surgiram como reação a situações de exploração em seus países. A ausência de lideranças estabelecidas é uma consequência do formato horizontal destas mobilizações. Ao mesmo tempo, ele observa que essa estrutura descentralizada “maximiza a possibilidade de participação das pessoas e dificulta a repressão”, além de afastar os movimentos da burocratização interna.
Uma característica fundamental para o acadêmico é que estas mobilizações não se resumem ao âmbito virtual. Ele explica que os protestos surgem e se articulam primeiramente através das redes sociais, mas em seguida partem para a ocupação do espaço público urbano. “Se querem modificar políticas, não basta somente as críticas na internet. É preciso tornar-se visível, desafiar a ordem estabelecida e forçar um diálogo. E fazem isso ocupando as ruas e criando um novo tipo de espaço público: um espaço autônomo e livre de instituições de qualquer tipo”, conclui.
Reação dos movimentos à repressão define o futuro das mobilizações
O acadêmico espanhol entende que a resposta que estes movimentos darão à repressão que sofrem da polícia e do Estado é fundamental para definir o destino que eles terão. “Não são movimentos violentos. As táticas da repressão é que os tornam violentos. A repressão violenta provoca violência e, neste momento, o movimento está morto”, analisa.
Para ele, as mobilizações sempre serão derrotadas se aderirem a práticas violentas. “Se agirem com violência, irão perder sempre, porque o sistema sempre será muito mais violento do que qualquer contra-violência que o movimento possa adotar. Em casos extremos, como ocorreu na Síria, se cria uma guerra civil. Aí o movimento está totalmente liquidado, porque se instaura uma lógica militar, fundamentalmente hierarquizada, e entram em jogo interesses geopolíticos e internacionais”, comenta.
Além disso, Manuel Castells afirma que as ações violentas, por mais inexpressivas que sejam durante os protestos, sempre serão reverberadas pela mídia tradicional de forma a prejudicar a imagem geral das mobilizações. “As ações violentas sempre serão repercutidas pelos meios de comunicação, mesmo se forem cometidas somente por dez pessoas. Essas imagens destroem os movimentos”, reforça.
Novos movimentos estão gerando nova cultura democrática diante da falência do atual modelo
O sociólogo explica que estes novos movimentos sociais não são políticos em sua essência institucional e partidária, mas carregam consigo a característica de qualquer mobilização social: a de transformar instituições, culturas e pensamentos. Manuel Castells frisa que esse sempre foi o papel dos movimentos sociais. “As mudanças raramente se iniciam a partir das instituições políticas. Começam através das mobilizações na sociedade”, acentua.
Para ele, estes novos movimentos podem provocar, a médio e longo prazo, mudanças culturais e de mentalidade capazes de transformar a estrutura política do Estado. “As formas de democracia e de participação criadas pela humanidade com muito esforço ao longo do tempo se esgotaram e se cercaram das elites políticas e econômicas”, critica.
O acadêmico entende que, neste processo, os partidos políticos tradicionais perderam completamente a legitimidade – tanto à direita quanto à esquerda. Manuel Castells avalia que a social-democracia está sendo destruída na Europa e aponta como co-responsáveis justamente os partidos social-democratas, que, assim como os conservadores, aplicam políticas econômicas orientadas por cortes em gastos sociais e direitos trabalhistas.
Ele citou o caso italiano para ilustrar esse contexto. Lá, o Movimento 5 Estrelas, um partido organizado pelas redes e com um discurso contrário à política tradicional, se converteu em uma das principais forças eleitorais do país. “É significativo que um partido que tem em seu programa de longo prazo a dissolução do Parlamento e o estabelecimento de uma democracia real e local através da internet tenha se tornado a primeira força política da Itália”, aponta.
Como consequência ao poder conquistado por este movimento no Legislativo, o Partido Democrático (PD, tradicional sigla de centro-esquerda) acabou costurando uma aliança com seu principal opositor, o partido Povo da Liberdade (PDL, legenda do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi). Isso porque o Movimento 5 Estrelas se recusou a compor uma coalizão com qualquer frente política. “Essa aliança era o que faltava para desmoralizar a política italiana”, lamenta Manuel Castells.
No espaço da cidade, o grupo de pressão mais poderoso é o da especulação imobiliária
Ao entender que estes novos movimentos sociais são, ao mesmo tempo, locais e globais, o sociólogo espanhol afirma que as causas que levam as pessoas às ruas estão relacionadas a disputas que ocorrem nas cidades, mas que são comuns a todos os centros urbanos ao redor do planeta. Ele acentua que, em uma cidade, a principal disputa se dá em torno dos interesses imobiliários.
“A grande questão nas cidades sempre tem sido a resistência aos interesses do grupo de pressão mais poderoso: a especulação imobiliária e a construção. Esses são os lobbys que destroem a qualidade de vida de uma cidade”. Ao fazer esta afirmação, já no final da conferência, Manuel Castells foi ovacionado.
Assustado, talvez, com a reação do público, fez um alerta. “Cuidado! O problema não é que existam imobiliárias e construtoras. A questão é como estabelecer o controle cidadão, participativo e político do plano de desenvolvimento urbano. Não se trata de atacar um grupo industrial, mas, sim, de controlá-lo. Se os setores imobiliários puderem fazer tudo o que quiserem, preferirão sempre ter mais lucros do que construir de forma socialmente responsável e ecologicamente correta. O problema não está na indústria, está na política e na capacidade dos partidos de ser independentes em relação ao poder econômico”, finalizou.
Antes de o público deixar o Salão de Atos da UFRGS, o mediador da conferência, o jornalista Juremir Machado da Silva, ainda arriscou uma consideração final: “Em Porto Alegre, os jovens lutam. Temos uma mídia ultraconservadora e um setor imobiliário que, se puder, constrói prédios até dentro do rio Guaíba”.
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