sexta-feira, 14 de junho de 2013

Aos companheiros que se esqueceram de Leme - por Andre Borges Lopes (Blog do Nassif)

Escrevi e postei esse texto no Facebook na quarta-feira, depois de muito ler e ouvir falar das manifestações em São Paulo. Mas ontem eu fui ver com meus próprios olhos o movimento dos estudantes. A moçada estava lá nas escadarias do Teatro Municipal, encontrei alguns amigos, ex-alunos e conhecidos. Caminhamos com pouquíssimos incidentes até Praça Rossevelt, com a polícia acompanhando de forma ostensiva mas serena, detendo um ou outro vândalo que ameaçava pixar os ônibus parados ou destruir as lojas. Até que começamos a subir a Consolação e chegou a tropa de choque já atirando e soltando suas bombas. Seguiu-se o que todo mundo já deve ter visto.

No meio das bombas de gás, fiquei imaginando como deveria estar tenso o clima naquela "Sala de Situação" que nos dizem que foi montada em Paris. Temo que talvez tenham tido que recorrer ao Calvados para controlar os nervos. E então tive a certeza de que eu não tinha absolutamente nada a mexer no meu texto.

AOS COMPANHEIROS QUE SE ESQUECERAM DE LEME

Meus amigos postam seus comentários sobre a manifestação da última terça-feira e sobre as cenas de violência que se espalham na imprensa. Em comum, uma condenação às depredações gratuitas e à ação de grupos de vândalos que – mais do que se contrapor à habitual truculência da PM - mostraram que estavam lá muito mais para arrumar confusão do que pelos motivos do protesto.

Me parece óbvio que no meio de milhares de pessoas que se manifestam podem estar aqueles velhos conhecidos dos paulistanos, que se disfarçam de torcedores para arrumar briga em estádios de futebol. Podem estar provocadores infiltrados por grupos que (por vários motivos) têm interesse em desmoralizar o movimento ou forçar um confronto descontrolado com direito a mortos e feridos. Por certo estão lá alguns jovens incendiários, radicais de ultra-alguma-coisa, sempre os primeiros a sugerir a alguém que jogue um paralelepípedo no parabrisas do camburão da Rota. Desses últimos, convém anotar e guardar o nome com carinho. Há grandes chances de que daqui a duas ou três décadas vocês os encontrem no rol de palestrantes e articulistas do Instituto Millenium, oferecendo comoventes testemunhos de fé e conversão.

Causou indignação e suspeita a destruição da fachada da Sede Nacional do PT. Indignação porque a prefeitura – mais que o governo do estado – alega ter trabalhado para reduzir o índice do reajuste, e deu sinais de alguma abertura para negociar. Suspeita porque a fúria das manifestações parece se dirigir muito mais contra novo prefeito Haddad do que contra o veterano tri-governador Alkimin. Os dois foram cúmplices no aumento dos transportes, mas até o momento nem uma casca de banana foi atirada nos jardins do palácio do Morumbi. O que é um excelente caldo de cultura para especulações e teses conspiratórias, que ligam o protesto a interesses partidários e a uma tentativa de desestabilizar a recente gestão petista. Explicar essa relação irada dos pequenos partidos de esquerda – como PSOL e PSTU – em relação ao PT é um assunto que está mais para Freud que para Marx e, por ora, eu não vou me alongar nesse ponto.

A questão é que os últimos dias me trouxeram de volta uma lembrança incômoda e eu fui buscar o fio da meada lá no século passado.

O ano era 1986 e a ditadura moribunda dava seus últimos suspiros já na "Nova República" sob a presidência de um ex-aliado dos militares: Zé Sarney, elevado ao cargo pelo desatino dos astros. Foi esse o ano do Plano Cruzado, o primeiro de muitas tentativas mal sucedidas de acabar com a inflação que ferrava o País. Era ano de eleição e os aliados do governo surfavam na euforia do povo com a farra dos preços congelados. Mas aqui em São Paulo a eleição para governador estava bem enrolada.

Um ano antes, o ex-presidente Jânio Quadros havia ganho a prefeitura de São Paulo com apoio da direita malufista, e a divisão de votos entre Fernando Henrique e Eduardo Suplicy foi apontada como a causa da derrota de FHC, azedando de vez as relações entre PMDB e PT. Orestes Quercia era o candidato à sucessão do governador Franco Montoro pelo PMDB, mas não ia bem nas pesquisas, e disputava o cargo com Paulo Maluf, Eduardo Suplicy e o megaempresário Antônio Ermírio de Moraes – uma eleição que se anunciava duríssima.

No início de julho, começou uma greve importante de trabalhadores rurais no noroeste paulista: cortadores de cana e catadores de laranja – os tais boias-frias, imortalizados na música de João Bosco e na voz da Elis. Na periferia da cidade de Leme, longe das câmeras de TV e da imprensa, uma manifestação dos grevistas foi reprimida pela PM com uma brutalidade tão estúpida que perto dela os protestos dos últimos dias em São Paulo ficam com cara de jogo de paintball. Policiais arrombaram e invadiram casas para espancar os moradores com cassetetes de madeira, houve dezenas de feridos com traumatismo craniano, braços quebrados, muitos tiros de revolver 38 e – ao final – dois trabalhadores mortos a bala: Orlando Correia e Sibely Aparecida Manoel.

No meio da manifestação havia um grupo de dirigentes sindicais e deputados das pequenas bancadas que o PT, a duras penas, conseguira eleger em 1982. Entre eles os deputados federais José Genoino e Djalma Bom – que tentaram, sem sucesso, evitar o confronto entre os manifestantes e a tropa. Consumada a tragédia, a PM divulgou uma versão fantasiosa, segundo a qual os tiros fatais teriam partido de um dos carros Opala, onde estava Genoino. Era um carro oficial da Assembléia Legislativa de São Paulo que havia levado os parlamentares até a cidade. A insinuação era de que os petistas teriam provocado o confronto e em seguida matado os trabalhadores para jogar a culpa na PM, desestabilizar o governo Montoro num momento de fragilidade e enfraquecer o candidato do PMDB (que, como todos sabem, acabou ganhando).

Anos depois ficou comprovado na Justiça que os tiros que assassinaram os bóias-frias haviam saído das armas da polícia. Mas na época o governador Montoro preferiu não bater de frente com versão da PM e ficou em cima do muro. Ao mesmo tempo em que ordenou uma investigação razoavelmente isenta, seu então Secretário de Justiça Eduardo Muylaert e o Ministro da Justica Paulo Brossard (ambos do PMDB) afirmavam taxativos que a culpa da tragédia havia sido dos deputados: "– Se os petistas não estivessem em Leme, ninguém teria morrido." As televisões e a maior parte da grande imprensa compraram essa versão policial, no que talvez tenha sido a primeira grande tentativa midiática de criminalizar a ação política do Partido dos Trabalhadores.

Por mais que a farsa fosse evidente e não resistisse nem mesmo a uma investigação amadora, não havia nada parecido com a internet ou das redes sociais para contestar o que a grande mídia vendia ao público. O hoje jornalista Breno Altman – então meu colega de faculdade – reuniu um grupo de militantes, tivemos o apoio do nosso valente camarada David Capistrano Filho (que anos depois se elegeu prefeito de Santos) e conseguimos editar, produzir e distribuir para a militância do PT dezenas de milhares de exemplares de um jornal tablóide com o título "A Verdade sobre Leme", onde desmontávamos uma a uma todas as mentiras da armação policial. Mas isso é apenas um parêntesis.

O importante é que essa conversa de que "os deputados do PT não deveriam estar lá" ganhou força mesmo entre correntes de esquerda que tinham lutado juntas contra a ditadura. Como os partidos comunistas ainda estavam na ilegalidade, PCB e PC do B elegiam seus deputados dentro do PMDB e eram aliados do governo Montoro. Eu já militava no PT mas ainda tinha muitos amigos no Partidão e acabei entrando de gaiato de uma conversa informal de um grupo deles onde esse assunto veio a tona. Ali eu aprendi uma lição que nunca mais esqueci na vida. Um velho comunista, veterano de jornadas de luta e temporadas na cadeia, virou para os jovens PCBistas e disse: "– Voces deveriam de se envergonhar de estar questionando se os deputados do PT tinham ou não que estar em Leme; a pergunta que a gente deveria estar fazendo é ONDE ESTAVAM OS NOSSOS DEPUTADOS, que não estavam lá em Leme naquele momento em que os trabalhadores mais precisavam deles."

Pois essa frase do velho camarada me volta à mente cada vez que eu vejo essa multidão de estudantes levantando seus cartazes na rua e enfrentando as bombas da PM e – ao contrário do que era comum nas décadas passadas – no meio deles não se vê uma única bandeira do PT. Haddad está na prefeitura há apenas cinco meses, mas Movimento do Passe Livre já existe há alguns anos e já tomou bastante borrachada da PM paulista nos últimos tempos. E a gente agora descobre atônito que o PT, no momento em que mais precisa, não tem nenhum canal de interlocução com eles. O movimento estudantil nunca deixou de existir em São Paulo, mas hoje quando os estudantes saem para as ruas o PT já não está na passeata. Um partido de esquerda que passa a ter medo de trabalhadores em greve ou de jovens que protestam nas ruas está colocando o primeiro prego na tampa do seu caixão.

Em 1986 o Partidão não deu muita bola para as recomendações daquele velho camarada: poucos meses depois abandonou a candidatura do PMDB e deu seu apoio ao "bom-burguês" Antônio Ermírio. Não me surpreende que alguns dos seus remanescentes sejam hoje linha auxiliar da Opus Dei do Morumbi. O PT seguiu seu caminho, chegou à presidência com Lula há dez anos e tem motivos de sobra para o justificado orgulho pelas mudanças que promoveu no País. Mas, no ano passado, elegemos um prefeito que tem 50 anos de idade e saudamos sua eleição (e com razão, o que é mais grave) como uma "renovação" no partido. E eu me pergunto há quantos anos o PT já não faz aqueles enormes comícios na Praça da Sé, com a molecada tomando as ruas alegremente ao final, até chegarmos em festa na Paulista? O que nos impede é só o reumatismo ou temos medo de atrapalhar o trânsito?

É fácil para quem ganha bem e anda de carro dizer que um aumento de 20 centavos (ou 10 centavos para os estudantes) não justifica tamanha revolta e baderna. Mas isso nos deveria levar a pensar que essa "revolta" e essa "baderna" podem ter na realidade motivações muito mais graves e profundas. Acho prudente que a gente se apresse em tentar compreendê-las, antes que elas atropelem a nossa confortável sensatez. Houvesse um movimento forte e expressivo de jovens petistas nas universidades e nas periferias de São Paulo – e é de lá que vieram os votos que elegeram Haddad – teríamos escutado antes da explosão o barulho da pólvora fervilhando. Mas parece que já não pertencemos a esse mundo. Tarde demais, somos acordados por ruas que nos pedem o impossível num momento em que o PT está ocupado em administrar a política do possível nos gabinetes de Brasília e em Paris.

Os jovens pedem o passe livre nos transportes – uma ideia que tem um milhão de inconvenientes numa metrópole do tamanho de São Paulo e traz enormes dificuldades políticas. Mas convenhamos: algo muito semelhante já foi defendido por muita gente boa do PT na gestão Erundina – e não dá para dizer que é "impossível". É sim uma "idéia fora da caixa", como há alguns anos era a Internet, como são hoje os novos Apps que chamam os taxis dispensando telefonista e cooperativa. Mas não é isso que o mundo pede aos jovens de hoje? Que abram novas possibilidades e pensem fora da caixa?

Eu acredito que a esmagadora maioria dessa meninada que toma as ruas não merece gás de pimenta e cacetadas, venham eles da USP, da Uninove, de Guaianazes ou do Grajaú. Merecem o nosso apoio e a nossa solidariedade contra a truculência brutal da polícia e também contra a violência sem sentido dos provocadores inconsequentes. É preciso compreender que eles não querem pequenas concessões, querem gente disposta a diálogar com espírito desarmado e sem as amarras de pré-conceitos. Eles não precisam de toneladas de regras e conselhos sensatos, precisam de uns poucos gramas de bons exemplos. Exemplos que lhes mostrem na prática que – ao contrário do que a grande mídia martela em seus ouvidos desde o dia em que eles nasceram – as organizações político-partidárias não são apenas quadrilhas de pilantras procurando enriquecer e enganar o povo. Que a militância e a disputa política cotidiana não são algo apodrecido e nojento, e que podem sim ser experiências solidárias, divertidas e motivo de orgulho – como foram e ainda são para muitos de nós.

Com sorte, talvez eles compreendam que essa democracia burguesa cheia de limites e esse capitalismo mal remendado onde nós vivemos são mesmo uma merda, mas que essa foi a melhor merda que nós – a duras penas e graças a muita luta – conseguimos construir até agora. E que fique claro que nós temos uma enorme esperança de que eles – livres e pensando fora da caixa – consigam inventar e construir algo novo e melhor. Algo que seja capaz de arrancar a humanidade desse atoleiro esquisito onde nós nos metemos.


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