O Brasil ingressa num ciclo de turbulência do qual a democracia participativa poderá emergir como parteira de uma sociedade mais equilibrada e justa.
Mas a esquerda não pode piscar.
A disputa fratricida, hoje, é o coveiro das esperanças nacionais.
Nos anos 50, um pedaço das forças progressistas só foi perceber o seu lado no jogo quando o povo já incendiava os carros do jornal 'O Globo', em resposta ao tiro com o qual Getúlio encerrou a sua resistência e convocou a das massas.
Ontem, como agora, o enclausuramento ideológico, o acanhamento organizativo e a dispersão programática pavimentam o caminho da ameaça regressiva.
É a hora da verdade de toda uma geração.
Cabe-lhe sustentar um novo desenho progressista para o desenvolvimento do país.
Um notável volume de investimentos é requerido para adequar a logística social e a infraestrutura às dimensões de uma nação que incorporou milhões de pobres ao mercado de consumo nos últimos anos.
Agora lhes deve a cidadania.
O novo giro da engrenagem terá que ocorrer num momento paradoxal.
A recuperação norte-americana encoraja as apostas no fim da crise, mas complica a mecânica do crescimento na periferia do mundo, encarecendo o custo do capital.
Asfixiada antes pela valorização do Real, a indústria brasileira agora é o canal de transmissão da alta do dólar nos índices de preços, por conta das importações.
Dotado de uma base fabril atrofiada pelo irrealismo cambial, o país importa quase 25% das manufaturas que consome.
A sangria transfere empregos ao exterior e corrói o principal irradiador de inovação em um sistema produtivo, ademais de fragilizar as contas externas.
O déficit comercial da indústria este ano alcançará o equivalente a 20% das reservas cambiais.
É só um vagalhão da tempestade perfeita que cobra respostas em várias frentes: prover a infraestrutura, combater a inflação, resgatar a industrialização, dar progressividade ao sistema tributário, ajustar o câmbio, modular o consumo.
Tudo junto e com a mesma prioridade.
A urgência das ruas sacudiu essa equação que há menos de um mês tornava a economia cada vez mais permeável a uma transição de ciclo preconizada pelo conservadorismo.
Com um título sugestivo, ‘Um Plano para Dilma’, coube ao editorial da Folha de 02/06, como já comentou Carta Maior, enunciá-la em detalhes.
O ‘plano’ consistia em impor ao país o projeto derrotado em 2002, 2006 e 2010.
A saber: arrocho fiscal e monetário; entrega do pré-sal às petroleiras internacionais; redução dos gastos sociais e dos ganhos reais de salários; renúncia ao Mercosul e adesão aos tratados de livre comércio.
Essa plataforma envelheceu miseravelmente nas últimas horas.
Mas não foi arquivada.
O interesse conservador que antes pretendia usar o governo para escalpelar as ruas, subtraindo-lhe conquistas e recursos na ordenação de um novo ciclo, agora quer usar as ruas para desidratar o governo.
A bipolaridade reflete a ansiedade típica de quem sabe que joga a carta do tudo ou nada.
Não por acaso, o jornalismo a serviço do dinheiro já constata receoso: ‘o que a rua pede colide com o que o mercado pretende'.(Valor Econômico)
Curto e grosso: o espaço para um ajuste convencional se estreita na rota de colisão entre a agenda do Estado mínimo e a da Democracia Social.
Quem dará coerência ao desenvolvimento brasileiro a partir de agora? -- perguntava Carta Maior há menos de um mês.
Antes turva, a resposta desta vez emerge mais limpa.
A nova coerência macroeconômica terá que ser buscada na correlação de forças redesenhada pelas grandes multidões que invadiram as ruas nas últimas semanas.
Emparedado pela lógica conservadora o governo Dilma passou a ter escolhas.
E o PT ganhou a chance de se reinventar, explicitando uma agenda clara para o passo seguinte da história.
Sua e a do país.
O bônus não autoriza o conjunto das forças progressistas a adotar a agenda da fragmentação suicida.
O focalismo cego às interações estruturais é confortável como um conto de fadas, em que a varinha de condão substitui as prioridades orçamentárias.
O descompromisso com partidos e organização dá leveza e audiência na mídia conservadora.
Mas levam ao impasse autodestrutivo e à inconsequência histórica.
Em entrevista ao correspondente de Carta Maior em Londres, Marcelo Justo, o pesquisador Paolo Gerbaldo, do Kings College, lembra que os indignados do Cairo rechaçaram os partidos na praça Tahrir. E abriram caminho a um governo desastroso da Irmandade Muçulmana no Egito.
Não se faz política sem poder; não se conquista poder sem disputar o Estado.
A responsabilidade de interferir num processo histórico pressupõe a adoção de balizas e estruturas que impeçam o retrocesso e assegurem coerência às mudanças.
Sem alianças aglutinadoras, nada feito.Sem construir linhas de passagem entre o real e o ideal, semeia-se angústia e decepção.
O jogo é pesado.
Limites estritos à ação convergente do Estado (mínimo) foram erguidos em todo o mundo nos últimos 30 anos.
A liberdade dos capitais manteve nações, projetos, partidos e governos sob chantagem impiedosa.
Domínios insulares foram instalados no interior do aparato público.
O conjunto elevou a tensão política que explode periodicamente, como agora -- como em 2002, em 2006 e em 2010 -- quando os mercados blindados se preparam para enfrentar a democracia insatisfeita nas urnas.
Teoricamente, essa é a hora em que o bancário e o banqueiro tem o mesmo peso no escrutínio do futuro.
Na prática, a locomotiva dos grandes levantes populares é que delimita a fronteira da democracia social em cada época. A urna, em geral, dá o acabamento do processo.
A alavanca brasileira, no caso, foram os levantes operários do ABC paulista dos anos 70/80 e a luta cívica contra a ditadura militar.
Nasceria daí o PT.
E o subsequente ciclo de governos do partido, caracterizado pela negociação permanente do divisor entre os dois domínios, o do dinheiro e o dos interesses gerais da sociedade.
Negociou-se ‘sem romper contratos’ durante os últimos 12 anos.
Com acertos, equívocos e hesitações fartamente listados.
Ainda assim, o saldo configura ‘um custo Brasil’ intolerável aos interesses acantonados no polo oposto do braço de ferro.
Um dado recente do Ipea explica essa rejeição: a renda dos 10% mais pobres cresceu 550% mais rápido do que a dos 10% mais ricos, no Brasil dos últimos 12 anos.
Avançar à bordo da composição de forças que delimitou a ação progressista até aqui tornou-se cada dia mais penoso.
Não apenas por conta do esgotamento real de um ciclo econômico.
Mas também porque se descuidou de prover a sociedade de canais democráticos para comandar o passo seguinte do processo.
A ausência de regulação que assegurasse um sistema audiovisual pluralista entregou a opinião pública à Globo.
A negligência com a organização democrática dos segmentos mais beneficiados pelas políticas públicas estreitou o seu foco nas gôndolas dos supermercados.
Faltava a locomotiva da história apitar outra vez para esticar os limites do possível na discussão do novo ciclo de crescimento que o país requer.
Foi o que as ruas fizeram.
A presidenta Dilma viu o bonde passar e não hesitou. Reagiu na direção certa.
Ao propor uma reforma plebiscitária para redesenhar os perímetros da democracia, deixou implícito --queira ou não-- que a soberania popular é também o único impulso capaz de harmonizar as balizas do novo ciclo de desenvolvimento.
Não é pouco o que se tem sobre a mesa.
Vive-se um meio fio histórico.
De um lado, há a chance de uma ruptura efetiva do desenvolvimento brasileiro com a camisa de força do neoliberalismo.
De outro, a espiral descendente dos impasses pode jogar o país no abismo de uma recaída ortodoxa devastadora.
O tempo urge.
Terão as lideranças progressistas discernimento e prontidão suficiente para negociar uma agenda comum feita de bandeiras, fóruns e ações que ordenem essa travessia?
A ver.
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