Em apenas duas semanas de protestos, as manifestantes conseguiram vitórias políticas extraordinárias: redução das passagens; derrota da PEC 37; passe livre estudantil e Goiânia, agravamento das penas aos corruptos etc. Os governos, o Senado e a Câmara desengavetaram projetos importantes de interesse público e de direitos dos cidadãos, que dormitavam há anos. Os políticos e os governantes em geral, assustados, acordaram de sua cômoda zona de conforto e acenaram com o atendimento de reivindicações. O tumulto das ruas fez tremer os políticos, encastelados em sua arrogância costumeira, que esconde sua incompetência, sua omissão e seu descaso para com as necessidades sociais.
Mas é preciso ficar atento. Quantas tragédias já não aconteceram nesse país, que fizeram os políticos vir a público prometer mundos e fundos e depois nada aconteceu? Basta lembrar as enchentes, as tragédias da zona serrana do Rio de Janeiro, a morte dos jovens em Santa Maria, surtos recorrentes de violência, a calamidade dos hospitais públicos e uma infindável lista de outros casos de omissão e corrupção, que vêm causando sofrimentos inauditos. Os governantes governam mal e o Estado não funciona. É contra essa trágica normalidade do Brasil que se mobilizaram milhares de pessoas.
Trapalhadas do Governo
O governo Dilma, tal como a esquerda em geral, reagiu de forma confusa e desorientada às manifestações. Num dia anunciou a proposta de uma Constituinte exclusiva e no dia seguinte a retirou. Esse é o retrato mais acabado da incompetência política do governo. A rigor, Dilma, encastelada na sua arrogância tecnocrática, não tem articulação política. No mínimo, é uma articulação política desastrosa.
Ao contrário do que muitos pensam, governar não é gerir e administrar burocraticamente as coisas do Estado. A essência do governar é a ação política. Um bom governo precisa ter bons projetos e um bom discurso, capaz de agregar o povo e aliados. Um bom governo precisa renovar permanentemente as esperanças dos governados com palavras e gestos, elevar sua moral, sua orientação e sentido em direção aos objetivos do bem público, do crescimento e do bem estar.
Nem Dilma, nem seus ministros mostram apetência para o bom conduzir discursivo e moral, combinado com um governo ativo. As dificuldades políticas do governo com o Congresso e com os partidos e o baixo diálogo com os grupos econômicos e com os movimentos sociais são uma evidência do pouco apetite do bem comandar, do bem conduzir. E quando o comando não é bom, terá que ser feito com o alto custo do toma lá da cá.
Limite do Projeto do PT
Independentemente das promessas que o PT possa ter feito nas várias candidaturas presidenciais – as três últimas vitoriosas – o programa efetivamente realizado pelos governos petistas se reduziu, no fundamental, a dois pontos: 1) um programa de crescimento da renda e, 2) um programa de inclusão social. Foram realizações importantíssimas, sem dúvida, mas completamente insuficientes para transformar o Brasil num país mais desenvolvido e justo. O primeiro ponto se efetuou pela recuperação do salário mínimo, dos níveis de renda e pela expansão do emprego. O segundo, pelo programa Bolsa Família, ProUni e outros programas sociais. Neste momento em que a economia deu um breque, revela-se toda a limitação desse projeto. Os ganhos cessaram e o consumo das famílias parou de subir.
O PT caiu na ilusão da nova classe média, a chamada "classe C". Tivesse o PT prestado atenção aos estudos de um de seus quadros, Márcio Pochmann (Nova Classe Média?), talvez não tivesse se iludido tanto. Pochamann diz que "O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada como uma nova classe média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas atuais".
Os que ascenderam socialmente ficaram com ganhos próximos do salário-mínimo. Em contrapartida, houve uma intensa mercadorização da seguridade social e baixo investimento nos serviços públicos essenciais como transporte público, saúde, segurança e educação. Esta é a crise: melhorou a renda e a inclusão social, mas o Estado permaneceu o mesmo – velho, enferrujado, ineficiente e corrupto. O PT não tinha um projeto de reforma do Estado e de transformação e modernização da economia. Se quiser continuar sendo relevante no futuro próximo, o PT precisa rever seu projeto e reposicionar-se na sociedade para que possa cumprir um papel estratégico mais efetivo. Isto vale também para os demais partidos. A situação é grave, pois se o projeto do PT se esgotou, a oposição e os demais partidos não construíram alternativas.
Por um Projeto Reformador
O papel de construir um projeto reformador para o Brasil não pode ser remetido apenas aos partidos, dada a sua baixa relevância estratégica. A sociedade civil organizada e as novas lideranças que emergirão dos movimentos de rua devem participar e, na medida do possível, liderar esse processo.
O projeto reformador não pode reduzir-se à reforma política, como querem os políticos governistas. A primeira coisa que precisa ser feita consiste em desprivatizar a democracia, hoje sequestrada pelos partidos, por governos arrogantes, pelos banqueiros, pelos empreiteiros e pelo alto capital. É preciso republicanizar a democracia e fazer com que seja mais próxima dos cidadãos e por eles controlada. Convocar um plebiscito para fazer uma reforma política é um tiro que poderá sair pela culatra. Mas se for convocado, é preciso aproveitá-lo para ampliar a pauta, disputando-a politicamente na sociedade.
A pauta de um projeto reformador é complexa e ampla. Mas é preciso que inclua uma reforma tributária capaz de estabelecer a justiça tributária no país. O Brasil, hoje, tira dos pobres para dar aos ricos. É preciso uma inversão nessa lógica. É preciso taxar as grandes fortunas, os bancos e os altos ganhos de renda, criando novas alíquotas para os altos salários.
Um projeto reformador precisa encaminhar uma ampla reforma urbana que facilite o acesso à moradia e que enfrente com coragem a qualidade dos serviços públicos, os passivos ambientais, o problema das favelas e do saneamento. É preciso modernizar a infraestrutura que, como está, inabilita a competitividade do Brasil no século XXI. O pacto federativo com sua lógica centralista não pode continuar como está. É preciso redistribuir os tributos, conferindo mais autonomia aos municípios, promovendo a integração nacional e o desenvolvimento regional. A integração sul-americana precisa ser revista, cortando as amarras do combalido Mercosul. O Brasil precisa ser líder de fato e não líder autodeclaratório da integração regional e deve buscar um papel mais assertivo no mundo com uma maior presença política e econômica global. Enfim, o Brasil precisa enfrentar os desafios da sociedade do conhecimento e da inovação, da energia verde, e da corrida tecnológica, temas que determinarão quem, efetivamente, se habilitará como potência significativa neste novo século.
Aldo Fornazieri – Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
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