Os líderes da oposição têm argumentado que o momento que o país vive simboliza o fim de um ciclo. Referem-se ao ciclo do lulismo, baseado na incorporação de milhões de pessoas ao consumo, via geração de empregos, programas de transferência de renda e ampliação do acesso ao crédito. Um ciclo que garantiu a reeleição de Lula em 2006 e a eleição da então quase desconhecida Dilma Rousseff em 2010. Sustentar que esse ciclo se encerrou, obviamente, faz parte da guerra de versões sobre o que está se passando no país atualmente. A oposição fala mirando 2014, tentando desgastar ao máximo o governo, o que é legítimo num regime democrático. Por outro lado intelectuais, como André Singer, criador do próprio termo lulismo, lêem a conjuntura de modo mais imparcial, mas também apontam para os limites de um modelo reformista que, se por um lado incluiu milhões de pessoas ao consumo, por outro mostra que não está imune à desaceleração da economia, gerando as tensões a que todos temos assistido.
De fato esse junho de 2013 mostra que talvez estejamos diante do fim de um ciclo, sim. Mas não me arriscaria a dizer que é o fim do ciclo do lulismo, seja em seus aspectos econômicos ou no que diz respeito ao apoio das massas populares a Lula, a Dilma e ao petismo. Se milhares de pessoas saíram às ruas de todo o país nas últimas semanas, há que se notar que num primeiro momento foi gente de classe média, dos grandes centros urbanos, e mais recentemente gente mais pobre, das periferias das grandes cidades e dos municípios do interior. Estes últimos, como estamos vendo, têm ido às ruas por questões que há muito tempo afligem o cotidiano dos que têm pouco dinheiro no Brasil: a falta de escola, de hospitais, de transporte, de moradia, de saneamento básico e o fim da violência por parte do Estado. É uma pauta bem diferente daquela da classe média tradicional, que marchou nas praças e avenidas das grandes cidades com seus temas como o combate à corrupção, o arquivamento da PEC 37 ou as reiteradas críticas ao governo federal.
No entanto, entre as muitas novidades trazidas por este junho de 2013 está o fato de que boa parte desta classe média tradicional, que jamais havia posto o pé na rua para reclamar ou reivindicar nada, também protestou por temas como saúde, educação, mais transparência e melhor gasto do dinheiro público. Num certo sentido não deixa de ser uma pauta conservadora, calcada na idéia de que o governo tem de gastar melhor e de forma mais clara os recursos obtidos com os tributos pagos pelo cidadão. Por outro lado, parece ser a primeira vez em muito tempo que esta mesma classe média tradicional sai da lógica do privado e volta a pensar o Estado. A turma que sempre apostou no automóvel, na escola particular e no plano de saúde pode estar mudando de postura.
Explico-me. O Brasil, saído da ditadura militar em 1985, mal havia conseguido desenhar a Constituição de 1988, que nos prometia um Estado de Bem Estar que jamais tivemos, e já foi atingido pela onda neoliberal, a partir da eleição de Collor de Mello, um ano depois. O discurso de Collor, que prometia levar o Brasil ao Primeiro Mundo, tinha como principal alvo o Estado, tido e havido como quase um inimigo da sociedade. Durante o governo FHC as coisas não foram tão diferentes, e se não foi consenso, foi amplamente apoiada em vários setores da sociedade a idéia de que o desenvolvimento viria através de um Estado enxuto, quase que reduzido a funções meramente regulatórias. Com Lula o cenário mudou um pouco, com a retomada, não pouco polêmica, do papel indutor do Estado, tanto do desenvolvimento social, ajudando os mais pobres, quanto do desenvolvimento econômico, fomentando setores empresariais. Lula mesmo parece ter apostado que a inclusão dos mais pobres no mercado seria a fórmula mágica pela qual todos se beneficiariam, inclusive empresários e classe média tradicional, por conta do maior giro da economia. Num certo sentido, embora nunca tenha sido este o discurso lulista, conduziu o país, na prática, à parte da imagem que temos do tal Primeiro Mundo, pautada pela universalização do consumo entre todos os extratos sociais.
As ruas, no entanto, talvez estejam a nos mostrar que se o ciclo lulista não acabou, mas certamente se desacelerou, algo novo pode ter sido gestado. E esse novo talvez seja a concepção de que só o mercado, ou de que só pelo consumo, o país não vai superar seus problemas. Os mais pobres, como sabemos, do mercado nunca puderam esperar muita coisa, e sempre tiveram no Estado a sua esperança de melhoria de vida. O fato novo parece ser uma mudança de concepção da classe média tradicional, que durante anos virou de costas para o Estado e agora parece estar se dando conta de que só com o mercado não consegue resolver seus problemas. Se essa hipótese faz sentido, podemos estar diante do fim de um ciclo e o início de outro, novo. Mas um ciclo novo que diz mais respeito a uma progressiva mudança de mentalidade dos setores médios da sociedade do que propriamente ao fim de um período de dinamização econômica e melhoria social pautado na inclusão, por baixo, dos mais pobres. A ver.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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