Uma heresia para os adoradores do livre mercado multiplica-se como um eco pelas catedrais do laissez-faire: Wall Street e Washington. Diante das enormes perdas com a crise imobiliária, é cada vez maior o coro de financistas a clamar por uma intervenção mais contundente do Estado no setor financeiro.
O chefe do Comitê de Bancos do Congresso dos Estados Unidos, Chris Dodd, quer criar uma versão moderna de uma instituição da era da depressão dos anos 30, que permitia o refinanciamento das hipotecas. De acordo com a revista The Economist, há propostas similares. Uma delas é permitir que a Administração Federal de Moradias compre as dívidas com desconto ou as refinancie, com a garantia do Tesouro. Outras consideram até a hipótese de uma estatização dos bancos em dificuldades, para posterior devolução aos acionistas quando curados da ressaca do subprime.
O prestigiado jornalista do Financial Times Martin Wolf considera que o custo da salvação do sistema seria de 7% do Produto Interno Bruto dos EUA, ou 1 trilhão de dólares, totalmente assimilável. Opinião divergente tem o colunista de CartaCapital, Nouriel Roubini (clique para ler a coluna), uma vez que ele levanta questões éticas a respeito de usar dinheiro público para socializar prejuízos.
Se, de um lado, as instituições financeiras querem almoço grátis, de outro, os governos exigem mais transparência dos jogos que envolvem trilhões de dólares. Uma perceptível mudança de discurso acontece nos fóruns mundiais. O clamor maior vem da Europa. Os acadêmicos franceses reforçam barricadas aguerridas contra a falta de controle sobre os balanços dos bancos. Para Robert Guttmann e Dominique Plihon, da Universidade Paris-Nord, o que está posto à mesa é a sobrevivência do padrão econômico global que prevaleceu nas últimas duas décadas, cujos alicerces são os Estados Unidos como consumidores mundiais em última instância. É um trocadilho com o papel dos bancos centrais (por definição, financiadores em última instância), considerados a caixa-forte que sempre abrirá os cofres para salvar o mundo financeiro. Entusiasmados, eles consideram que, desta vez, o mocinho sobrevivente do tiroteio não será norte-americano.
Mas o debate não se esgota na academia. Em 29 de janeiro, houve um encontro de líderes em Londres, recepcionados pelo primeiro-ministro Gordon Brown. Estavam presentes a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, o presidente francês, Nicolas Sarcozy, o então primeiro-ministro italiano, Romano Prodi, e o presidente da União Européia, José Manuel Barroso. Em pauta: a necessidade de maior transparência e regulação, em função da escassez global de crédito.
A mais contundente foi Merkel. Em entrevista coletiva, disse que os questionamentos foram feitos, há buracos regulatórios e o G-8 (grupo que reúne os países mais ricos do mundo) quer vê-los fechados. Segundo suas palavras, “no caso de as instituições financeiras não tomarem providências sérias, nós adotaremos medidas regulatórias”. Em comunicado conjunto, os líderes afirmaram que, “se os participantes do mercado se mostrarem relutantes ou incapazes a dar soluções à crise, nós estaremos prontos para apresentar alternativas de fiscalização”.
Logo depois dessa reunião de cúpula, em 13 de fevereiro, o diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn, fez um forte discurso, em visita à Índia. “A atual crise é resultado de uma tempestade perfeita: um longo período macroeconômico de taxa de juro baixa, liquidez abundante e pouca volatilidade, que levaram as instituições financeiras a subestimar os riscos, uma total desorganização nas práticas de concessão de crédito e avaliação de riscos e deficiências na supervisão e regulação financeira.”
E concluiu que o Fundo tem de mudar suas práticas, alterar o sistema de representatividade, para dar mais voz aos países emergentes e fazer um ajuste fiscal na instituição: cortar gastos e aumentar a arrecadação. Isso reforçaria o poder de supervisão do FMI, tão questionado por críticos. Cumpre-se lembrar que a ascensão de Strauss-Kahn foi considerada, por muitos analistas, como uma necessária renovação no pensamento conservador da instituição. “Que houve uma mudança na mentalidade, é inquestionável”, diz Maryse Farhi, do Instituto de Economia da Unicamp. “O problema é se quem dá a verba vai permitir”, provoca a economista, referindo-se ao poder que os EUA têm na organização.
Segundo ela, consertar a crise do subprime necessariamente passa pela Basiléia (Suíça), mais precisamente pelo Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês). Maryse lembra que a balbúrdia provocada pelas hipotecas podres teve origem no acordo Basiléia 2. “O subprime é um filho bastardo. O acordo incentivou os bancos a esconder falcatruas, a omitir informações nos balanços”, diz. Trocando em miúdos, em vez de provisionar recursos para eventuais perdas, as instituições financeiras criaram os Structured Investment Vehicles (SIVs), que empacotavam dívidas potencialmente inadimplentes e foram espalhados pelas carteiras dos investidores globais. Sem constar nos balanços, ressalte-se. De nada adianta, ainda, fazer remendos nacionais. Somente um novo acordo coibiria o advento de novas crises, porque os bancos são “useiros e vezeiros” de acharem um país qualquer para fazer operações suspeitas.
“Esta crise é subproduto de Basiléia 2”, faz coro Fernando Cardim, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O acordo não deu respostas a crises de liquidez, como ocorre agora. “Não basta ter capital imobilizado, se o cliente bate à porta da agência para resgatar seu dinheiro”, diz. Descrente de concertos internacionais do quilate suíço, ele lembra que “a regulação é necessariamente nacional, mas o sistema é globalizado”. Há um vácuo, segundo o economista, não preenchido por nenhuma instituição, por não possuírem mandato para tal. “Os Estados são muito menores do que os mercados. São liliputianos”, constata.
Também para Peter Weissman, editor da revista Multinational Monitor, “controles internacionais seriam muito desejáveis, mas não parecem estar no horizonte de curto prazo”. Para ele, ressuscitar a discussão sobre a Tobin Tax (imposto sobre capitais financeiros internacionais) é infelizmente uma quimera. Não há força política dos governos nem disposição para encarar o poderio dos mercados. Por isso, ele defende que isoladamente países ponham-se na defensiva e criem mecanismos anti-especulação. Sobre o papel do FMI, Weissman admite à revista que houve um avanço significativo, com a gerência-geral de Strauss-Kahn. Mas é realista ao provocar: “Você imaginaria o FMI concordar com países que adotassem controles de capitais?”
Apesar de se confessar um entusiasta das idéias keynesianas, Weissman não vê espaço para a formulação de uma espécie de New Deal global. “O momento político não é apropriado. Nem se sabe o tamanho do estrago feito na economia americana. Além disso, mesmo os candidatos democratas têm obstáculos ideológicos a iniciativas que visem maior intervenção do Estado na economia.” Para ele, o enorme déficit do país é outro entrave, que limita iniciativas proativas do governo.
Peter Morici, professor da Universidade de Maryland e ex-economista-chefe da Comissão de Comércio Internacional dos Estados Unidos, escreveu um ácido artigo para o site contracorrente CounterPunch, com críticas severas ao governo Bush e ao presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, no que se refere às medidas, por ele consideradas paliativas, para refrear a crise do subprime. À CartaCapital Morici mostrou-se cético quanto à eficácia de grandes acordos, para corrigir distorções financeiras globais.
“Nem o FMI nem o G-8 têm poder para impor maior regulação. A tarefa seria do BIS. Na visão do economista, no entanto, a questão bancária é basicamente nacional. “Para haver maior supervisão, é preciso envolver os políticos no Congresso. Seria preciso que bancos regionais quebrassem para que houvesse uma movimentação maior.”
Segundo ele, leis internacionais são mais voltadas para recomendações do que imposições. A exceção talvez esteja no âmbito do comércio e do meio ambiente. “É uma bobagem pensar que os burocratas das instituições internacionais estejam interessados em algo mais concreto. Eles vivem muito bem, almoçando em restaurantes maravilhosos na Grã-Bretanha e em Washington.” Não haverá um New Deal global porque, em qualquer circunstância, os EUA farão o que é melhor para eles, “assim como vocês no Brasil”. É o modo de funcionamento da engrenagem mundial, diz o economista.
“Um acordo internacional demora 20 anos para ser costurado. Por que o Brasil, por exemplo, aceitaria regras bancárias que não foram discutidas e votadas localmente?”, pergunta Morici. Apenas um detalhe: o Brasil acatou as regras de Basiléia 2 sem ao menos participar do comitê que regulamentou as regras que envolvem patrimônio e investimentos, lembra Cardim, da UFRJ. Tudo é decidido pela meia dúzia de sempre. A não ser que os franceses Guttmann e Plihon tenham acertado na análise de que mudou o padrão econômico mundial. A conferir.
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