A inigualável biografia de Paulo Maluf pode ser escrita de muitas maneiras. Em nenhuma poderá faltar o adjetivo “grandioso”. Seja no poder de persuadir os 739.827 paulistas que o colocaram na Câmara dos Deputados em 2006 – sob a oportuna salvaguarda do foro privilegiado –, seja na capacidade de lesar o patrimônio público em 39 anos de atividade política. Maluf (PP-SP) deve mais de 10 bilhões de reais aos cofres do estado, estimativa “apenas” dos processos movidos pelo Ministério Público de São Paulo.
Há três décadas, portanto, antes que o rombo chegasse a tal dimensão, um advogado perseguido pela ditadura, idealista e persistente, muito persistente, enquadrou Maluf em sua mira. Walter do Amaral é o autor da ação popular que, depois de quase 28 anos, enfim condenou o ex-governador e outros cinco réus a indenizar o estado de São Paulo em 4,3 bilhões de reais.
Hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Amaral aproveitou alguns dias de suas férias para voltar a uma rotina tão antiga quanto estimulante: escarafunchar em páginas e páginas de provas e petições contra Maluf. Desde que se tornou juiz, ele tem dois advogados para representá-lo na ação mencionada acima, do caso Paulipetro. Dia 20 de fevereiro, o trio encaminhou à Justiça Federal do Rio de Janeiro o pedido de execução da sentença do Supremo Tribunal Federal (STF) que condenou os envolvidos no fim de 2007.
A Paulipetro, não custa lembrar, é uma genuína “obra de Maluf”. Fazendo jus à fama de seu criador, trata-se do “maior escândalo da história da exploração do petróleo no Brasil”, conforme a classificou o subprocurador-geral da República Wagner de Castro Mathias Netto. Com o mirabolante propósito de explorar petróleo e gás no estado de São Paulo (algo que a Petrobras já havia tentado – e desistido), a empresa foi criada a partir de um convênio entre a Companhia Energética de São Paulo (Cesp) e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e firmou contratos de alto risco com a própria Petrobras. Rios de dinheiro se perderam. E agora Maluf, Silvio Fernandes Lopes e Osvaldo Palma (ex-secretários de Estado), além das três empresas, terão de ressarcir o Erário em 716 milhões de reais, partes iguais dos 4,3 bilhões devidos.
Apesar de não caber recurso, os réus não entregam os pontos. Em vias de ser privatizada, a Cesp alega não ter sido notificada a respeito da sentença. “O assunto está sub judice e a empresa não vai se pronunciar”, diz a nota oficial. A Petrobras, também em nota à imprensa, reconhece o encerramento do processo, mas admite dever ao estado apenas 250 mil dólares, referentes à venda de informações geológicas da Bacia do Rio Paraná à Paulipetro. A Assessoria de Comunicação do IPT não se manifestou. O mesmo vale para os representantes de Silvio Fernandes Lopes e Osvaldo Palma. Provavelmente, seguirão os passos dos advogados de Maluf, que divulgaram uma nota defendendo os contratos da Paulipetro e prometendo entrar com uma ação rescisória, com o objetivo de anular a sentença do STF. Até o momento, não o fizeram. Como a decisão é definitiva, para pedir sua nulidade será preciso antes depositar, em juízo, 5% do valor devido. “Quero só ver de onde o Maluf vai tirar esse dinheiro”, provoca Amaral, com a intimidade de quem fala de um velho conhecido.
Maluf está com 76 anos, Amaral tem 63. Eles só se encontraram em tribunais, umas cinco vezes, mas estão judicialmente ligados há décadas. Desde 1980, Amaral ajuizou três ações populares contra o ex-governador e advogou em ao menos outras 30. A ação popular é um instrumento constitucional que permite a qualquer cidadão brasileiro pedir a anulação de atos lesivos ao patrimônio público. Para compreender o confronto entre o advogado e o político, é preciso voltar no tempo. Mais precisamente, ao início dos anos 1960, quando o jovem Amaral, filho de fazendeiros em Rincão, no interior paulista, abandonava o conservadorismo da família plantadora de cana-de-açúcar para ser líder estudantil dos secundaristas de Araraquara (SP).
No mesmo período, o futuro engenheiro de origem libanesa Maluf servia no Exército e, por intermédio do sogro Fuad Lutfalla, tornava-se muito amigo do general Arthur da Costa e Silva, que, na qualidade de ditador de plantão, assinaria, em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5, início da fase mais sombria e violenta da ditadura no País. Com o golpe de 64, um foi perseguido e teve a matrícula no curso de Direito cancelada. O outro ganhou o cargo de diretor-regional da Caixa Econômica Federal, em São Paulo. A amizade com Costa e Silva ainda faria maravilhas pela carreira política de Maluf.
Amaral só conseguiria cursar uma faculdade a partir de 1968, ano em que se casou com Edna, então professora primária em Araraquara. Na esteira do AI-5, agentes do regime perseguiam, prendiam e matavam militantes de esquerda, como fizeram com José Arantes de Almeida, colega dele. Assim que se formou, começou a advogar para os presos políticos em São Paulo. “A essa altura, os líderes estudantis de 1964 já eram expectadores dos de 1968. A gente trabalhava para livrar a cara deles”, relembra. Ele lista os nomes de José Serra, Helio Navarro, Sérgio Lazzarini, José Dirceu, Antonio Funari Filho, Altino Dantas, Luiz Travassos e Airton Soares entre os esquerdistas daquele tempo.
Soares, também advogado e ex-deputado pelo PT, fala da atuação do colega: “Numa época em que as denúncias de corrupção eram inviabilizadas pela censura, o Walter usou um instrumento de luta absolutamente legítimo, a ação popular, para atacar o problema. E não era um mero cidadão reclamante, era alguém com envolvimento político”.
Em 1975, depois de advogar um ano e meio para a extinta Telesp, o advogado prestou concurso e entrou no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (hoje BNDES). Ali, foi destacado para assessorar a intervenção do governo na empresa paulista Fiação e Tecelagem Lutfalla, à beira da falência. “Pensei que encontraria apenas um negócio malsucedido, mas acabamos descobrindo um enorme esquema, em que o dinheiro do banco ia para empresas em nome da esposa de Maluf, Sylvia Lutfalla Maluf. Na Lutfalla havia todo tipo de sonegação, a empresa era um Código Civil ambulante”, diz, e complementa: “Eu já sabia quem era Maluf, sabia que estava lidando com gente forte. Ele conseguia as benesses do BNDE por obra do Costa e Silva, dos porões da ditadura”.
O caso estourou em 1977 e ficou conhecido como Escândalo Lutfalla. Nos anos seguintes, Maluf teve os bens confiscados, mas não respondeu por crime de enriquecimento ilícito porque todas as iniciativas esbarraram na omissão do Ministério Público, suscetível à crescente influência política do apadrinhado do general.
Na efervescência dos acontecimentos, Amaral teve “comichão para a política de novo”. Candidatou-se a deputado estadual, em 1978, na sublegenda do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que lançou a candidatura de Fernando Henrique Cardoso a senador. “Trabalhei intensamente na campanha dele, que depois nos traiu miseravelmente”, pontua.
Derrotado, o advogado retornou ao BNDE para, em 1979, ser demitido. Um mês depois, Maluf assumiria o governo do estado. “A partir daquele momento, percebi que só me restava enfrentá-lo. Eu precisava me dedicar a essa causa, e o caminho seria a ação popular. A cada passo em falso dele, eu ingressava com uma ação”, diz o desembargador, sentado no sofá de couro do gabinete que ocupa, no prédio do Tribunal Regional Federal, na avenida Paulista. Ele conta a história de sua vida com enorme precisão de detalhes e sem nunca perder um traço do sorriso no rosto, emblema de quem sempre foi fiel às próprias convicções.
A saga contra Maluf estava apenas começando. A ação da Paulipetro era, ironicamente, a primeira da série. Nos anos seguintes, porém, viria o troco. Amaral e sua família enfrentariam sérios problemas financeiros, assim como ocorreu com milhares de outros militantes da esquerda.
Desempregado, ele era procurado apenas para causas que davam “muito trabalho e pouco dinheiro”, conforme explica. Não tinha renda, estava com o nome marcado, sem perspectiva de melhora. Em casa, apenas o salário da esposa sustentava os três filhos, ainda pequenos. Para piorar, começaram as ameaças. “Eu recebia telefonemas, ameaças aos meus filhos, minha família. Outras vezes, mulheres ligavam em casa e isso abalou meu casamento”, diz.
A filha do meio, Ana Lígia do Amaral, de 32 anos, descreve o clima da época. “Com as ameaças, meu pai temia pela nossa segurança, não nos deixava ir para a escola sozinhos. Passamos muita dificuldade financeira. Me lembro dele dobrando jornal para colocar no sapato furado, indo levar petições a pé, na chuva, não havia o que o impedisse.”
As crianças também acompanharam o envolvimento político do pai, que no início dos anos 1980 seria um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. “Eu ia nas reuniões do PT, segurava bandeira nos comícios. Sempre discutimos política lá em casa. E, claro, Maluf era assunto do almoço e da janta”, brinca Ana, hoje advogada, como o pai. “Aprendi com ele que não precisamos fazer parte da unanimidade. Aprendi valores que carregarei para sempre.”
Nesse período, o então deputado Geraldo Siqueira presidia uma comissão investigativa na Assembléia e era, ao lado de Amaral, outro grande inimigo de Maluf. “O Maluf simbolizava a corrupção e a linha-dura da ditadura. Eu enxergava o Walter como um militante. Estávamos todos no mesmo barco, éramos uma geração que lutava contra a ditadura”, diz Siqueira, e pondera: “Claro, havia também o caráter quixotesco, meu e dele. A gente tentava, tentava, tentava, mas nada era aceito como prova contra o Maluf, ele tinha o estado nas mãos”.
Em 1982, Amaral foi candidato derrotado novamente. Repetiria a tentativa outras duas vezes, em 1986 e 1990. “Ser eleito era secundário. As candidaturas eram uma forma de levar esses fatos à mídia. Sempre combati o Maluf como uma missão de vida. Em nome da Justiça e por ideologia mesmo”, avalia.
Apenas quando Maluf foi derrotado no colégio eleitoral, em 1984, Amaral deu por encerrada a parte intensiva dessa missão. “Com a democratização, terminou. Quando ele foi prefeito, eleito pelo povo, recusei inúmeros pedidos de ação popular. Meu projeto era contra a ditadura.”
No correr dos anos 1990, Amaral diz ter percebido que o PT “estava mudando e para pior”. Preferiu se afastar. Sem aposentadoria, ainda com dificuldades financeiras, prestou concurso para juiz federal. Aprovado em 1995, não pôde mais advogar em causa própria. A advogada Marirosa Manesco, sua atual companheira, assumiu todas as ações. O ex-militante e amigo de longa data, João Cunha, também advoga para ele na ação da Paulipetro. É este o trio que pediu a execução da sentença em 20 de fevereiro.
Cabe dizer que uma característica da ação popular é de os condenados pagarem os honorários da acusação. Ou seja, a menos que o processo seja anulado, os réus terão de desembolsar 10% da sentença da Paulipetro para os três. O valor talvez leve tempo a ser pago, mas passará de 390 milhões de reais. Uma grandiosidade, bem ao estilo Paulo Maluf.
Hoje, Amaral curte o fim desta parábola de longa privação e recompensa tardia. Há alguns anos, o destino reservou-lhe ainda uma indenização por perseguição política, similar às conferidas pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, no processo que abriu após a demissão do antigo BNDE. Foi reintegrado e recebeu algo em torno de 6 milhões de reais. Aproveitou para blindar sua Toyota Hilux, depois que a facção criminosa PCC ameaçou atacar desembargadores do estado, em 2006. Morador do Boqueirão, uma área valorizada de Santos, no litoral paulista, comprou, em janeiro deste ano, uma casa na vizinha Guarujá. E uma lancha Ferreti de 40 pés.
Não é uma ironia ter lutado tanto contra o enriquecimento ilícito para, no fim, terminar milionário? “É um incentivo. Corrupção é o que não falta no Brasil, e a ação popular é um instrumento excelente”, diz ele, que, garante, ainda não está plenamente satisfeito. E o motivo nada tem a ver com dinheiro. “O simples fato de a Justiça tardar é uma falha. Nesse tempo todo, o Maluf disseminou a imagem de que não havia provas de seus crimes. Se a Justiça fosse mais rápida, ele não teria chegado aonde chegou.” Procurado, Maluf não quis se pronunciar. Detesta Amaral. O que, para o desembargador, não deixa de soar como um grandioso elogio.
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