Em duelo com a dura realidade dos fatos, o governador José Serra, candidatíssimo a candidato à Presidência da República em 2010, esforça-se nas últimas semanas para não acusar os golpes que o destino lhe tem pregado. Não foram poucos e ainda levará algum tempo até que seus efeitos sejam completamente conhecidos. Em poucos dias, Serra viu o fôlego financeiro do seu governo – e, por tabela, de seus ambiciosos planos políticos – reduzido consideravelmente, ao não conseguir levantar os 6,6 bilhões de reais que a privatização da Cesp renderia, de acordo com os planos do estado. Assistiu à confirmação pública de Geraldo Alckmin, seu maior adversário interno no plano estadual, como virtual candidato do PSDB à prefeitura paulistana. E contou com um empurrão do PT, que jogou para a frente a decisão em torno da provável aliança com o PSDB mineiro de Aécio Neves, o tucano que insiste em tirar o sono do governador paulista em sua cruzada rumo ao Planalto. Para quem conhece Serra, a maior prova de que as coisas não andam como ele gostaria são o bom humor e a leveza com que tem aparecido para comentar seus reveses.
O caso do fracassado leilão da Cesp é emblemático. Na terça-feira 25, véspera da data marcada para o leilão, depois de confirmado o desastre, Serra bateu na tecla de que a culpa foi da crise financeira norte-americana e do fluxo reduzido de crédito internacional para os investidores. “Numa conjuntura internacional ruim, não foi fácil para as empresas encontrarem financiamento”, afirmou Serra, acrescentando que fazia uma avaliação “como economista”. Restou ao governador lançar mão de uma “vantagem comparativa” às avessas, para usar uma expressão cara à teoria econômica: “Não vendemos a empresa na bacia das almas”, foi o melhor que o governador pôde argumentar em sua defesa, como se tivesse resistido a uma incomensurável pressão. Quem sabe proveniente de Serra, o político.
“Sem dúvida, foi uma derrota para o governo paulista, que poderá, inclusive, ser explorada pelo Aécio. Mas não creio que seja suficiente para inviabilizar a candidatura do Serra à Presidência, inclusive porque há questões circunstanciais, como o cenário internacional e o problema das concessões”, afirma o cientista político Cláudio Couto, professor da PUC-SP e da FGV. Couto considera que nem a possibilidade de levar o carimbo de privatista seria necessariamente ruim para Serra. “Na última campanha, quando o Alckmin reagiu usando boné e camiseta de estatais, o estrago foi grande por ele ter demonstrado insegurança. Se tivesse defendido as privatizações, acredito que o resultado seria diferente”, avalia.
Uma parcela da mídia bem que tentou colaborar com o governador, culpando as empresas pré-qualificadas e mesmo o governo federal. As primeiras por terem se recusado a participar dentro das condições estabelecidas pelo governo de São Paulo. E o segundo por não ter alterado em cima da hora as leis que regulam o setor elétrico nacional, de modo a permitir a renovação de duas concessões que a Cesp terá de devolver à União em 2015, responsáveis por dois terços da capacidade de geração da empresa paulista. É consenso entre os especialistas do setor que aí está a principal causa do fiasco.
Caso saísse uma cartada do Ministério de Minas e Energia nesse sentido, não é difícil supor a acusação que recairia sobre o governo federal, por atentar contra a segurança jurídica, tida como um dos pilares do crescimento econômico. Curiosamente, ocorreu o contrário: na quarta-feira 26, alguns jornais tidos como liberais defenderam, na primeira página, a necessidade de alterar a “confusão” da atual lei de outorgas, conforme o desejado por Serra. O governador também incluiu na sua lista de causas a incerteza em relação às concessões, mas em um modesto terceiro lugar, atrás da crise nos EUA e do ímpeto baixista dos investidores candidatos.
A lei que trata do setor elétrico é, contudo, bastante clara a esse respeito – bem como a infelicidade de Serra. Obriga o governo do estado de São Paulo a devolver as usinas de Jupiá e Ilha Solteira, assim que o prazo de concessão vencer pela segunda vez. Caberá à União realizar nova licitação e auferir lucro com o leilão, posto que o potencial hidráulico dos rios é patrimônio nacional – não do governo de São Paulo ou de sua geradora de energia.
Nesse ponto, o governo federal também teve sua parcela de responsabilidade. Poucos dias antes do leilão, o ministro Edison Lobão (Minas e Energia) afirmou que buscava uma “brecha” jurídica que permitisse renovar pela terceira vez as concessões da Cesp. Com isso, concedeu alguns dias de vida a mais para o sonho de Serra, que ainda fez correr a informação de que o BNDES entraria para financiar os compradores.
A jogada do ministro Lobão não foi sem sentido. Serviu para defender interesses da estatal federal de energia, Eletrobrás, cujas outorgas também vencerão nos próximos anos pela segunda vez. Como a intenção oficial é transformar a companhia em uma Petrobras do setor elétrico, seria ruim que a empresa tivesse de entregar suas concessões. Ao fim, ficou claro que este é um assunto que terá de ser avaliado pelo Congresso Nacional, provavelmente, na próxima legislatura.
Em viagem a São Paulo, o senador Sérgio Guerra (PE), presidente nacional do PSDB, bateu o martelo no mesmo dia em que foi decretado o cancelamento do leilão. Mais uma vez, contra os interesses serristas. O anúncio saiu depois de Guerra encontrar-se com o governador e com Alckmin, separadamente. O senador pôde constatar o grau de animosidade que separa, de modo irremediável, os dois tucanos.
Depois do encontro, Guerra afirmou que a aliança local entre o DEM e ala tucana ligada a Serra teria de conviver com dois candidatos nas próximas eleições municipais. A questão será conter o ímpeto do prefeito Gilberto Kassab e de Alckmin, de modo que a campanha não cause estragos duradouros.
Com Serra veladamente apostando suas fichas em Kassab, o risco será o de Alckmin sair marchando e a banda (tucana) não o acompanhar. “Não há dúvida nenhuma de que o Serra vai cristianizar o Alckmin. Ele já deixou claro, aliás, que as lideranças do PSDB municipal não vão ungi-lo candidato. O Alckmin terá de dizer ‘eu quero’”, diz o pesquisador do Cebrap Marcos Nobre, professor do Departamento de Filosofia da Unicamp. Referência a Cristiano Machado, do PSD, que em 1950 disputou com Getúlio Vargas e foi sumariamente abandonado pelo partido, cujos militantes preferiram votar em Vargas.
No caso de Alckmin, essa possibilidade cresce consideravelmente quando se leva em conta o estilo Serra de fazer política. Para os analistas políticos, sua carreira sempre foi marcada pelo individualismo e a sede de poder. Também lembram o episódio que envolveu, em 2002, a pré-candidata à Presidência da República pelo então PFL, Roseana Sarney, que desistiu da disputa depois de uma batida da Polícia Federal encontrar 1,3 milhão de reais em dinheiro na empresa de seu ex-marido Jorge Murad. O dinheiro seria usado para gastos da campanha. Na ocasião, lideranças do partido de Roseana saíram convencidas de que a campanha de Serra estava por trás da denúncia. Por conta desse caso e também de desavenças entre Serra e ACM, consta que uma parcela considerável do atual DEM prefere trabalhar contra os interesses de Serra. E a aliança seria vital para viabilizar a candidatura deste em nível nacional.
Nos bastidores, comenta-se que a tensa relação entre Serra e Alckmin chega a envolver as respectivas esposas, a atual primeira-dama do estado, Mônica, e a ex Maria Lúcia. As duas cortaram relações, e o ponto central da discórdia seria um assunto de interesse público. Lu Alckmin, como é conhecida, não considera razoável que as contas do último ano do governo de seu marido tenham merecido advertências do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Vê o dedo do atual governador nessa história.
Constrangimentos, pelo visto, não faltarão ao candidato Alckmin. Nas últimas semanas, ele tem convivido com artigos em jornais e manifestos assinados pela bancada de seu próprio partido na Câmara Municipal. Em todos os casos, não é necessário nenhum conhecimento maior de semiótica para captar a mensagem: Gilberto Kassab, apesar de ser do DEM, é o preferido.
A seu favor, Alckmin conta com o fato nada desprezível de ser o primeiro colocado nas pesquisas de opinião. Em segundo lugar, a ministra Marta Suplicy e, em terceiro, Kassab.
Com essa vantagem e as poucas opções que os próximos anos lhe reservam na política, o ex-governador sabe que não pode dar margem ao azar, nem muito menos ficar a reboque de Serra. “Alckmin não pode perder. Se perder, provavelmente terá de esperar até 2010, quando sairá candidato a senador. Mas seu perfil é de executivo e isso poderá ser fatal quando ele chegar ao Senado. O mais provável é que ele seja um zero à esquerda no Parlamento”, afirma Nobre.
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