sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A moral e os mercados - por Delfim Netto (Cartacapital)

A evolução da situação econômica mundial tem sido um fator de grande desilusão para aqueles que crêem que a economia (ou se preferem, a teoria econômica), como as chamadas ciências “duras”, tem por objeto “o que é”, não o que “deve ser”. O generoso objetivo da Economia Política é criar as condições para um processo civilizatório capaz de garantir a sobrevivência digna e harmoniosa de todo cidadão, imerso numa sociedade onde cada um possa realizar-se plenamente, explorando com liberdade suas potencialidades. Se existissem leis naturais que produzissem necessariamente a auto-organização dos indivíduos, como ocorre nos domínios da natureza explorados pelas ciências “duras”, tudo seria simples. O mecanismo de auto-organização descoberto pelos economistas é o mercado, onde cada agente cuidando do seu próprio interesse acabaria produzindo a harmonia geral.

Foi essa descoberta que transformou lentamente o conhecimento econômico, de uma série de conselhos de comportamento (e, logo, recomendações morais sobre o que deve ser) dos escolásticos, no conhecimento do que é pretendido pela moderna economia. Até praticamente os anos 30 do século passado, a hipótese implícita na economia era a de um agente moral, como exemplifica o “espectador imparcial” de Adam Smith.

Há um movimento dialético interminável entre a economia e a realidade econômica, que melhora as duas: criam-se novas e se aperfeiçoam velhas instituições sob o estímulo dos conhecimentos da economia, que por sua vez modificam a realidade e esta estimula novos conhecimentos e assim por diante. A grande lição da crise financeira que vivemos, que vai se estender para a economia real, é que toda a brilhante trajetória da economia como ciência do que é desmoronou sob a falta de moralidade do agente, ou seja, pelo conhecimento que inclui o que deve ser.

A crise é produto de falhas da instituição criada pelos avanços da economia. Os bancos centrais (que implicam um evidente déficit democrático) nasceram para subtrair a política monetária do poder incumbente eleito (com freqüente tendência populista) e entregá-la a profissionais supostamente portadores de uma ciência do que é e, seguramente, imunes ao populismo. Ficou claro, entretanto, o comportamento oportunista dos bancos centrais do mundo desenvolvido. Eles mantiveram uma taxa de juro real muito baixa, por um período maior do que o desejável, estimularam a ampliação da liquidez e foram incapazes de controlar a sofisticação financeira produzida pelos incentivos errados fornecidos aos seus agentes. Os avanços da economia vão corrigir essas falhas com nova regulação e talvez novas instituições. Vão separar, claramente, a execução da política monetária da fiscalização e controle do próprio sistema financeiro. No fundo, vão tentar impor a moralidade aos agentes. Quanto mais se procura transformar a economia numa ciência do que é, tanto mais a moralidade (a ciência do que deve ser) emerge dentro dela.

Outra grave desilusão foi produzida pela recomendação da economia de que as reformas dos mercados, a privatização e a liberalização do comércio e dos movimentos de capitais produziriam uma globalização tendente a melhorar a situação de todo cidadão (não importa onde ele estivesse). Elas reduziriam o poder político dos governos, que seriam submetidos ao poder da racionalidade dos mercados.

A crise (paralela à financeira), que atingiu os mercados de energia, metais e alimentos, mostrou que os Estados (ou melhor, os governos incumbentes que os representam) estão tão vivos e ferozes como sempre estiveram quando se trata de defender suas autonomias: 1. A alimentar. 2. A energética. 3. Tanto quanto possível, a militar. Diante da crise, vimos todos eles jogarem para o alto as recomendações da economia, às quais, até então, fingiam aderir com entusiasmo. Todos fecharam (talvez o Brasil tenha sido a única exceção) seus mercados de alimentos, esquecendo a liberdade de comércio; todos embarcaram em políticas de uso mais eficiente da energia e na produção de energias alternativas sem a menor consideração pela sua economicidade e todos tentam, a qualquer custo, melhorar a sua autonomia militar.

O grande paradoxo é que a sugestão irrealista da economia de reduzir o papel do Estado, substituindo-o pelo mercado, terminou aumentando-o. É preciso começar de novo, institucionalizando a moralidade dos agentes ao mercado.

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