O muro de Berlim já era escombro no início dos anos 90, quando a URSS se desintegrou, neutralizando o principal pólo de oposição à política externa dos EUA. Foi então que as trombetas do neoliberalismo se fizeram ouvir em todos os cantos, despertando discursos triunfalistas de toda sorte. Tiveram vez fatalismos como o de Francis Fukuyama, que anunciou consumada a profecia de Hegel sobre o fim dos processos históricos de mudança. O sinal do fim da história, segundo o politólogo norte-americano, era o evidente triunfo da democracia liberal sobre todos os sistemas e ideologias concorrentes. Tratava-se somente de esperar que as nações convergissem naturalmente à moda liberal de Washington.
Mas esse fundamentalismo não resistiu aos confrontos com a realidade mundial. A China tornou-se o pólo mais dinâmico da economia global sob o inabalável comando de seu partido único, comunista. A Rússia pós-soviética segue seu destino autoritário, agora sob o disfarce de democracia ocidental, insinuando passos liberais de acordo com as escandalosas conveniências de sua subterrânea casta dirigente. Mesmo no grupo das democracias moderadas não são poucos os exemplos de rebeldia, mas é na terra santa do liberalismo, os EUA, que a fé liberal está sendo testada de verdade.
O terremoto que abalou os mercados financeiros mundiais na última semana teve seu epicentro em Wall Street e instalou de vez a discórdia entre os pregadores liberais. A crise bancária que se iniciou há cerca de um ano com a inadimplência generalizada no mercado hipotecário dos EUA fez desmoronar pilares do capitalismo americano, como os bancos Bear Sterns e o Lehman Brothers. Escaparam da falência a mega-seguradora AIG e as agências de crédito imobiliário Freddie Mac e Fannie Mae, condenadas pelo mercado, mas socorridas ao custo de uma colossal transfusão de recursos públicos da ordem de centenas de bilhoes de dólares. E a transfusão público-privada prossegue com um plano emergencial de 700 bilhões de dólares que, se aprovado pelo Congresso, será a maior intervenção do setor público norte-americano no mercado financeiro. Tudo indica que a partir deste outono Manhathan estará tão povoada de servidores públicos como nossa Esplanada dos Ministérios!
Todos esses acontecimentos remetem aos anos 90, o tempo da conversão das almas à fé liberal. Com métodos talibãs, Washington doutrinava o mundo via Tesouro, FMI e Banco Mundial, impondo políticas neoliberais aos países em dificuldades econômicas. Por todos os continentes proliferaram governos obedientes, particularmente na frágil América Latina, que elegeu Salinas de Gortari, no México; Menen, na Argentina; e FHC, no Brasil. Festejados por toda uma década como os portadores da modernidade, levaram à cabo os preceitos do “consenso de Washington” e seus dogmas do estado mínimo. E o batismo neoliberal da América Latina foi celebrado com fogos e artifícios editoriais!
Mas o vôo dos exterminadores de patrimônio público não levou os seus países à solução final de Fukuyama. Salinas substituiu estatais por incontroláveis monopólios privados em setores essenciais da economia. Feito isso, amarrou seu país à ALCA, de tal forma que hoje os mexicanos vêem-se como os primeiros herdeiros da crise americana. Execrado por seus compatriotas, Salinas exilou-se na Europa. Menem promoveu uma farsa cambial de longa duração, ao final da qual a Argentina estava desindustrializada, privatizada e encaminhada para um futuro desastre econômico. O ex-presidente é hoje um zumbi da política argentina e consome seu tempo defendendo-se de acusações de corrupção. E FHC, com seus leilões a toque de caixa, tocados “no limite da responsabilidade”, por três vezes levou o Brasil à margem da insolvência. Socorrido pelo FMI mediante condicionantes liberais, sujeitou o país a um ciclo liberal vicioso. Também promoveu uma festa cambial eleitoreira, legando ao sucessor uma herança de contas públicas fora do controle. Hoje FHC amarga rejeição popular tal, que seus companheiros de partido tratam de omiti-lo das propagandas eleitorais para evitar prejuízo nas urnas.
O melancólico destino político dessa geração de leiloeiros latino-americanos indica uma rejeição popular ao dogmatismo liberal no continente. Esse julgamento aconteceu anos antes da atual crise do mercado financeiro dos EUA, mas é somente agora que a discussão sobre os limites da atuação do estado na economia de mercado ganha o debate mundial. Os contribuintes americanos estão fazendo o balanço dos prejuízos por terem largado os agentes financeiros à sorte do mercado, num ambiente sub-regulamentado e mal fiscalizado. Um sobrevôo pelos debates da internet mostra que há uma crítica geral à irresponsabilidade dos banqueiros e uma dúvida nacional sobre a pertinência de o estado resgatar com recursos públicos os entes econômicos falidos. Na dúvida, nenhum partido quererá assumir a responsabilidade por um colapso sistêmico, o que torna inevitável o sacrifício do contribuinte com ainda mais estatizações.
É de se esperar que a crise seja o principal cabo eleitoral na iminente eleição presidencial norte-americana - e Barack Obama está melhor posicionado para capitalizar o voto de protesto. De qualquer forma, quem quer que seja o vencedor, o próximo presidente terá que ajustar a política de seu país à uma realidade diferente do ambiente triunfalista liberal dos anos 90. Da mesma forma que a derrocada da URSS silenciou defensores do estatismo centralizador, a atual crise já começa a serenar os ânimos dos exorcistas do estado. Se é que se pode ter algum otimismo em meio à atual tempestade, esse vem da esperança de um debate econômico mundial mais moderado, com menos fanatismo. Não seria ruim que fosse esse o começo do fim da história.
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