Uma lembrança
Morávamos em Gravatá a 80 km de Recife. O ano era 1964.
No dia 08 de janeiro faleceu meu pai e em 31 de março estourou a tal revolução, eu tinha então 10 anos.
Nós não tínhamos televisão e o que se passava fora de Gravatá eu não sabia.
Meus irmãos mais velhos estudavam em Recife, três faziam faculdade e um cursava o científico. Somos 06 irmãos, e eu e meu irmão caçula, então com 08 anos, continuamos a morar em Gravatá com mamãe.
Mamãe era educadora, uma mulher de fibra, trabalhava os dois expedientes, se dedicava de corpo e alma a educação. Não tínhamos luxo, tínhamos livros, e líamos muito, desde pequenos.
Percebi que mamãe andava diferente, preocupada, ansiosa, angustiada, e achei que era por causa da morte do meu pai. Afinal de contas criar 06 filhos, todos estudantes, sozinha, jovem e bonita numa cidade de interior onde as línguas são afiadíssimas, deve ter sido difícil para ela. Mas era por causa da Revolução. Em 1965 meu irmão mais velho, o segundo, um dia aparece lá em casa e conversa com mamãe. Ele estudava filosofia na UFPE. À noite fomos para a praça da cidade, pensei eu que era para passear, e havia outras famílias também por lá, foi quando percebi que Dodó, meu irmão, e os amigos, oito rapazes, todos de Gravatá e estudantes, iam viajar numa Kombi e os pais estavam chorando, inclusive minha mãe.
Eram 10 horas da noite. Daí eu pensei, “mas que besteira mamãe chorando só por que Dodó vai viajar, uma coisa que ele fazia tantas vezes, viajar para Recife”. Eu não tinha a menor idéia do que se passava em Recife e muito menos no resto do Brasil.
Na minha casa tinha uma sala de estudos que mais parecia uma biblioteca. Muitos livros, duas mesas e várias cadeiras. Nós não tínhamos nem televisão, nem geladeira, nem liquidificador, nada eletrônico, só um rádio lindo que era do meu pai, mas livros havia muitos, para todos os gostos.
Quando voltamos da praça já tarde da noite, mamãe nos colocou na cama para dormir, eu e Deco, meu irmão caçula. Lá pelas tantas me levantei e encontrei a porta da cozinha aberta e mamãe no quintal com uma enxada fazendo um buraco e os livros do meu irmão jogados no chão. Não entendi nada, mas perguntei por que ela tava fazendo isso. Ela respondeu que “tinha que enterrá-los porque naquele momento eram proibidos por lei ter esses livros em casa”. Continuei sem entender nada. Daí ela me fez jurar que jamais contaria aquilo para qualquer pessoa que não fosse da casa. Jurei por todos os santos, anjos da guarda e pela alma do meu pai e voltei para cama.
O restante do ano foi tranqüilo.
Comentário: e há quem dê vivas a bestialidade deste regime putrefato!
Nenhum comentário:
Postar um comentário