Desde o 11/9, em 2001, a mídia dos EUA e de outras partes do mundo dissemina com extrema leviandade a teoria do “choque de civilizações”. A expressão virou lugar-comum depois de ser usada pelo cientista político Samuel P. Huntington, autor em 1996 do livro The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order (O choque de civilizaçõs e a reformulação da ordem mundial).
O livro é encarado às vezes como tão influente na estratégia do governo Bush como tinha sido, na década de 1940, o estudo de George Kennan sobre o Containment, a proposta da contenção do comunismo, justificativa intelectual da doutrina Truman em 1947. Resultou, segundo o próprio Huntington, da controvérsia gerada pelo artigo que publicou em 1993 na revista Foreign Affairs, sobre o mesmo tema (leia AQUI uma entrevista dele sobre o assunto, dada em 2007 à revista New Perspectives Quarterly).
Editores da Foreign Affairs compararam a repercussão à do ensaio de Kennan em 1947, sob o título The Sources of Soviet Conduct (As fontes da conduta soviética), assinado então com o pseudônimo “X” (leia-o na íntegra AQUI, no original inglês). Walter Lippman, à época o mais influente analista de política externa na mídia, fez depois uma crítica corrosiva e minuciosa ao trabalho - ambos republicados 25 anos depois, com preciosa apresentação de Ronald Steel, no livro The Cold War (A Guerra Fria).
O Ocidente contra o resto?
A tese de Huntington é de que “choques de civilizações” (em vez de conflitos entre nações) passarão a dominar a política mundial, tornando-se a maior ameaça à paz no mundo. Como melhor salvaguarda contra a guerra, sugeriu sua própria receita de nova ordem internacional. Vivemos hoje, alegou, a transição do antigo sistema mundial apoiado em três blocos de poder (EUA, URSS, Terceiro Mundo) para outro.
O novo seria integrado por oito grandes civilizações - ocidental, japonesa, confuciana (chinesa), hindu, islâmica, eslava-ortodoxa, latino-americana e possivelmente africana. Ele fez certas concessões (diferenças não significam necessariamente conflito, conflito não é necessariamente violência), mas observou:
O mundo está ficando menor, aumenta a interação entre pessoas de diferentes civilizações;
A modernização econômica e a mudança social afastam as pessoas da antiga identidade local e enfraquecem estados, permitindo que religiões fundamentalistas preencham a lacuna;
Certas nações não ocidentais, com mais recursos, ficam mais tentadas a impor ao mundo hábitos e opções não ocidentais;
Diferenças culturais são mais difíceis de superar do que as políticas e econômicas;
Mais regionalismo econômico reforça a consciência de civilização.
Levando em conta diferenças de séculos, que não desaparecerão logo, e a pouca ressonância das idéias ocidentais de individualismo, liberalismo, direitos humanos, constitucionalismo, igualdade, liberdade, democracia e separação Estado-Igreja nas culturas islâmica, confuciana, japonesa, hindu, budista ou ortodoxa, ele concluiu ser provável que o eixo central da política mundial no futuro venha a ser o conflito entre “o Ocidente e o resto” (expressão de Kishore Mahbubani em 1992).
O fundamentalismo dos dois lados
Huntington culpa as respostas das civilizações não ocidentais aos valores e poderio do Ocidente. E arremata citando uma ameaça terrível da “conexão islâmica-confuciana” contra o Ocidente (deixa de explicar por que não, por exemplo, um choque entre a islâmica e a confuciana). A política ocidental teria necessariamente de ser conduzida no sentido de manter a hegemonia mundial, desestabilizando as civilizações hostis por meios militares e diplomáticos. Lançadas umas contra outras, no estilo “equilíbrio do poder”, elas aprenderiam a conviver com a diversidade global.
Surgiram contestações vigorosas (leia AQUI a resposta de Huntington a seus críticos na Foreign Affairs), mas a expressão “choque de civilizações” entrou na moda. Críticos apontam muitos furos, entre eles o fato de serem comuns os conflitos dentro das próprias civilizações - e entre elas. É destacado ainda que a busca de mais eqüidade em termos globais, atendendo às necessidades humanas, contribuiria para evitar choques entre civilizações.
Mas Huntington insiste: os choques virão, causados pela incompatibilidade de valores políticos e morais. Não explica por que têm de gerar confrontação política e militar (leia mais AQUI sobre esta e outras polêmicas envolvendo Huntington). No governo Bush a teoria foi abraçada com fervor por neoconservadores (neocons) e pelos teocratas da direita religiosa (theocons). No Pentágono, foi consagrada dias depois do 11/9, quando o neocon Paul Wolfowitz, secretário adjunto da Defesa, advogou uma “resposta ao Iraque” - embora a inteligência só culpasse a al-Qaeda de Osama bin Laden.
Pouco adiantou o perplexo secretário de Estado Colin Powell alertar que tal coisa afastaria os aliados. O próprio Bush diria ao neocon Richard Perle que tão logo fosse resolvido o problema do Afeganistão seria a vez do Iraque. Na terça-feira, 18/9, Perle reuniu os 30 membros do Defense Policy Board (Comitê de Política de Defesa), então presidido por ele no Pentágono, na própria sala de conferências do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld.
O intelectual e o banqueiro falido
Dois convidados especiais falaram naquela reunião. O primeiro foi Bernard Lewis, da Universidade de Princeton, ligado há anos a Wolfowitz e Dick Cheney e cujo trabalho acadêmico foi duramente criticado por professores e autores como Noam Chomsky (que o chamou de “propagandista vulgar e não um acadêmico”), Edward Said e Israel Charney. Decano dos estudiosos das relações Ocidente-Islã, Lewis fora o primeiro a usar a expressão “choque de civilizações”. O próprio Huntington contou só ter recorrido a ela depois de ler um polêmico ensaio dele, The Roots of Muslim Rage (As raízes da fúria islâmica - leia AQUI o original inglês), no qual Lewis escrevera o seguinte:
“(…) Enfrentamos um estado de espírito e um movimento que transcende o nível de temas e políticas, como dos governos que as perseguem. É um choque de civilizações - reação talvez irracional mas certamente histórica de um antigo rival contra nossa herança judaico-cristã, nossa atual secularidade, e a expansão em âmbito mundial de ambos.”
No Pentágono, Lewis disse que os EUA tinham de responder com demonstração de força ao 11/9, para dar uma lição ao mundo islâmico. E ao defender um apoio aos “reformistas democratas” do Oriente Médio, voltou-se para o lado onde estava outro convidado de Perle para falar na reunião: “… como o meu amigo aqui, dr. Chalabi”. Referia-se a Ahmed Chalabi, iraquiano de nascimento e banqueiro falido além de lobista em Washington, procurado por fraude na Jordânia e Inglaterra mas favorito do Pentágono para tomar o lugar de Saddam Hussein.
A presença no coração do Pentágono do criador da expressão “choque de civilizações”, junto com o banqueiro vigarista que falsificara “razões” para o governo Bush invadir o Iraque, era indício eloqüente das opções da Casa Branca. Três dias antes o presidente Bush, “cristão renascido” e muito próximo de evangélicos fundamentalistas, prometera responder com uma “cruzada” à jihad de Bin Laden. Assim começou a nascer a nova estratégia bushista para substituir a doutrina Truman da guerra fria.
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