CAPITALISMO EM CRISE (II)
O resgate de todos os resgates: golpe de Estado cleptocrata nos EUA
O governo dos EUA mudou radicalmente o caráter do capitalismo norte-americano. Trata-se, nem mais nem menos, de um “golpe de Estado” a favor da classe que Franklin Delano Roosevelt chamava de “bancgsters”. O que aconteceu nas últimas semanas pode alterar o curso do século que começa de maneira irreversível. Estamos diante da maior e mais desigual transferência de riqueza desde que se presentearam terras aos barões das ferrovias na era da Guerra Civil. A análise é de Michael Hudson.
Ninguém esperava que o capitalismo industrial terminasse deste modo. Mais do que isso, ninguém sequer imaginou que ele evoluiria nesta direção. Suspeito que essa cegueira seja freqüente entre os futurólogos: a tendência natural é pensar sobre a forma ótima de crescimento e desenvolvimento das economias. Mas sempre parece surgir um caminho imprevisto e então a sociedade se vai por uma tangente.
Que duas semanas! No domingo, 7 de setembro, o Tesouro assumiu o controle dos 5,3 bilhões de dólares expostos ao risco hipotecário das empresas Fannie Mae e Freddie Mac, cujos chefes já tinham sido destituídos por fraude contábil. No dia 15 de setembro, Lehman Brothers declarou-se em bancarrota quando possíveis compradores de Wall Street não conseguiram encontrar rastro algum de realidade em sua contabilidade financeira. Dois dias depois, o Federal Reserve concordou em aprovar, a um custo de pelo menos 85 bilhões de dólares, os lucros “assegurados” que a AIG devia a instituições financeiras que, por meio do comércio de valores nas bolsas, apostaram em hipotecas podres e contrataram seguros de cobertura com essa empresa seguradora, o American International Group (cujo chefe, Maurice Greenberg, havia sido destituído poucos anos antes por fraude contábil).
19 de setembro: o momento de inflexão
Mas é o dia 19 de setembro que figurará na história dos EUA como o momento de inflexão. A Casa Branca comprometeu ao menos 500 bilhões de dólares no esforço de aumentar os preços imobiliários a fim de sustentar o valor de mercado das hipotecas podres (hipotecas contratadas sem levar em conta a capacidade dos devedores para pagar e que, além disso, superestimam o preço corrente de mercado que se oferece como garantia da dívida).
Esses bilhões de dólares foram sacrificados para manter vivo um sonho: as ficções contábeis postas sobre o papel por empresas que ingressaram em um mundo irreal fundado em uma contabilidade falsa que praticamente todo o mundo financeiro sabia ser enganosa. Mas todos jogavam com as hipotecas podres porque ali é onde se ganhava dinheiro. Inclusive, no momento do colapso dos mercados, vários gestores executivos de fundos de investimentos que mantinham a lucidez foram duramente criticados por não embarcar neste jogo enquanto ele funcionava.
Tenho amigos em Wall Street que foram demitidos por não conseguir igualar os lucros que colegas seus estavam conseguindo. E os maiores retornos eram conseguidos através da comercialização dos maiores ativos financeiros da economia: a dívida hipotecária. Somente as hipotecas pertencentes ou garantidas por Fannie e Freddie já excediam o volume de toda a dívida nacional dos EUA, que é o déficit acumulado pelo Estado norte-americano desde os dias em que a nação ganhou a guerra revolucionária da independência!
Isso dá uma idéia das enormes dimensões do resgate, assim como das prioridades do Estado (ou, ao menos, dos republicanos no governo). Em vez de despertar a economia para a realidade, o governo empenhou todos os seus recursos na promoção de um sonho irreal, segundo o qual as dívidas podem ser pagas: se não pelos próprios devedores, pelo governo (ou os “contribuintes”, como se diz eufemisticamente). Diante das trevas, o Tesouro dos EUA e o Federal Reserve mudaram radicalmente a face do capitalismo norte-americano. Trata-se, nem mais nem menos, de um “golpe de Estado” a favor da classe que Franklin Delano Roosevelt chamava de “bancgsters”. O que aconteceu nas duas últimas semanas ameaça alterar o curso do século que começa, de maneira irreversível. Pois estamos diante da maior e mais desigual transferência de riqueza desde que se presentearam terras aos barões das ferrovias na era da Guerra Civil.
Socorrendo os doadores da campanha eleitoral
Ainda assim, há poucos indícios de que isso chegue sequer a pôr fim ao som dos tambores e trompetes em defesa do livre mercado executado pelos insiders financeiros que conseguiram destruir o controle público pela via de colocar reconhecidos anti-reguladores nas principais agências reguladoras, gerando assim o caos que, segundo diz agora o secretário do Tesouro, Henry Paulson, ameaça os depósitos bancários e os postos de trabalho de todos os norte-americanos. Mas quem está realmente ameaçado são os maiores contribuidores financeiros da campanha eleitoral dos republicanos (e para ser justo, também os maiores contribuidores das campanhas de candidatos democratas a postos-chave nos comitês de finanças do Congresso.
Uma classe cleptocrática tomou o controle da economia, a fim de substituir o capitalismo industrial. O termo cunhado um dia por Roosevelt – “bancgsters” – diz tudo em uma palavra. A economia foi assaltada e capturada por uma potência exterior. Não pelos suspeitos habituais: não foi pelo socialismo, não pelos trabalhadores, não pelo “Estado gigante”, não pelos industriais monopolistas, nem sequer pelas grandes famílias de banqueiros. Também não o foi pela franco-maçonaria ou pelos illuminati (seria maravilhoso que existisse de verdade algum grupo que atuasse nas sombras, com séculos de sabedoria acumulada; assim, ao menos, alguém teria um plano).
Os Exterminadores do Futuro
O que ocorreu é que os “bancgsters” aliaram-se com uma potência externa: não com os comunistas, não com os russos, asiáticos ou árabes: aliaram-se com algo que sequer é humano. O grupo em questão é um feixe de máquinas. Isso pode soar ao tema do filme “Exterminador do Futuro”, mas o certo é que os computadores conseguiram assumir o controle do mundo, ao menos o mundo da Casa Branca.
Eis aqui como conseguiram. A AIG subscreveu apólices de seguros de todo tipo solicitados por gente e pelo mundo dos negócios: seguros de habitação e de propriedade, seguros agropecuários e inclusive seguros para cobrir o arrendamento aeronáutico. Esse rentabilíssimo negócio não foi o problema (por isso mesmo, provavelmente, será todo coberto para poder pagar as apostas fracassadas da companhia). A queda da AIG veio dos 450 bilhões de dólares que ficaram pendurados ao assegurar garantias a fundos hedge de investimento.
Em outras palavras: se duas partes jogavam um jogo de soma zero, apostando uma contra a outra pela alta ou queda do dólar frente à libra esterlina ou ao euro, ou se asseguravam uma carteira hipotecária ou hipotecas podres para ter garantias de que seriam cobertas, pagavam uma minúscula comissão a AIG por uma apólice que prometia pagar, se o mercado hipotecário norte-americanos de 11 trilhões de dólares chegasse a “tropeçar”, ou se os perdedores que tinham colocado bilhões de dólares em apostas em derivados do mercado internacional de divisas ou em derivados financeiros de ações ou obrigações, terminassem em uma situação parecida com a que se encontram muitos jogadores de Las Vegas, isto é, incapazes de cobrir suas dívidas em dinheiro.
A AIG colheu bilhões de dólares com essas apólices. E graças ao fato de que essas companhias seguradoras são um paraíso “friedmaniano” – não regulado pelo Federal Reserve, nem por nenhuma outra agência de alcance nacional – a subscrição dessas apólices era feita por meio de processos informáticos. A empresa recebia enormes quantidades de honorários e comissões sem sequer aportar capital. Isso é o que se chama de “auto-regulação”. E é assim que, supostamente, funciona a mão invisível do mercado.
O fato é que, inevitavelmente, algumas instituições financeiras que tinham apostado bilhões de dólares – normalmente, e para ser preciso, apostando 1 bilhão de dólares no curso de uns poucos minutos – não estavam em condições de pagar. Esses jogos se desenvolviam em micro-segundos, praticamente sem interferência humana. Neste sentido, não é tão distinto dos alienígenas tomando o controle. Mas neste caso trata-se de máquinas tipo robô: daí a analogia que tracei com os Exterminadores.
Seu repentino acesso ao poder é tão imprevisível como uma invasão procedente de Marte. A analogia que mais se aproxima é a invasão dos Chicago Boy’s, do Banco Mundial e da USAID (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional) a Rússia e a outras economias pós-soviéticas logo após a dissolução da URSS, promovendo privatizações de livre mercado a fim de criar cleptocracias nacionais. Para os estadounidenses deveria constituir um sinal de alerta que esses cleptocratas tenham se convertido nas fortunas fundadoras de seus respectivos países. Deveríamos ter presente a observação de Aristóteles, segundo a qual a democracia é o estado imediatamente anterior à oligarquia.
Comércio à velocidade da luz
As máquinas financeiras que desenvolveram o comércio que resultou na quebra da AIG estavam programadas por executivos financeiros para atuar com a velocidade da luz em operações de comércio eletrônico que costumam durar alguns segundos, e isso, milhões de vezes ao dia. Só uma máquina poderia calcular a distribuição de probabilidades matemáticas a partir da observação de ínfimas variações, para cima e para baixo, de taxas de juros, taxas de câmbio, preços de ações e obrigações, preços de hipotecas empacotadas. E esses últimos pacotes, cada vez mais, assumiram a forma de hipotecas podres, supostamente dívidas pagáveis mas, na realidade, casca vazia.
Em particular, as máquinas empregadas pelos fundos hedge deram um novo significado ao capitalismo de cassino. Há muito que se aplicava esse significado aos especuladores que jogavam no mercado de valores. Consistia em fazer apostas cruzadas, perder algo e ganhar algo, e deixar que o Estado resgatasse os não-pagadores. O giro observável na turbulência das duas últimas semanas é que os ganhadores não podem recolher os lucros de suas apostas, a menos que o governo pague as dívidas contraídas pelos perdedores, incapazes de satisfazê-las com seu próprio dinheiro.
Alguém poderia pensar que tudo isso exige algum grau de controle por parte do Estado, que provavelmente esse tipo de atividade não deveria jamais ter sido autorizada. De fato, nunca foi autorizada, tampouco regulada. Mas parecia haver uma boa razão para isso: os investidores dos fundos hedge assinaram um papel dizendo que eram suficientemente ricos para permitirem-se perder seu dinheiro neste jogo financeiro. Um jogo que não era acessível aos pobres mortais. Apesar do alto rendimento gerado por milhões de minúsculas operações comerciais, tais operações eram consideradas demasiado arriscadas para principiantes carentes de fundos confiáveis para entrar no jogo.
Um fundo hedge, ou fundo de cobertura ou de investimento livre, não ganha dinheiro produzindo bens e serviços. Não avança fundos para comprar ativos reais, nem sequer empresta dinheiro. O que faz é tomar emprestadas enormes somas para alavancar suas apostas com crédito praticamente ilimitado. Seus executivos não são engenheiros industriais, mas sim matemáticos que programam computadores para fazer apostas cruzadas ou straddles sobre como se comportarão as taxas de juros, as taxas de câmbio de moedas, os preços das ações e obrigações ou os preços das hipotecas empacotadas pelos bancos. Os empréstimos empacotados podem ter lastro ou ser puro lixo. Não importa. A única coisa que importa é ganhar dinheiro em um mercado no qual o grosso das operações comerciais dura apenas alguns segundos. O que gera lucros é a fibrilação dos preços, a volatilidade.
Jogo financeiro sem criação de riqueza
Este tipo de transações pode fazer fortunas, mas não é a “criação de riqueza” que muita gente imagina. Antes da fórmula matemática de Black-Scholes para calcular o valor das apostas destes fundos de investimento livre, esse tipo de jogo com opções de compra e venda resultava demasiado custoso, salvo para as empresas de intermediação financeira. Mas a combinação de potentes computadores com a “inovação” representada por um crédito praticamente ilimitado e o livre acesso às tabelas do jogo financeiro tornaram possível uma frenética manobra de ir e vir.
Pois bem, por que o Tesouro considerou inevitável esse esquema? Por que seria preciso salvar esses cassinos e seus apostadores, se eles tinham dinheiro bastante para perder sem que se convertessem em salas hospitalares necessitadas de assistência pública? O comércio de fundos hedge estava limitado aos muito ricos, aos bancos de investimentos e a outros investidores institucionais. Mas uma das maneiras mais fáceis de ganhar dinheiro chegou a ser emprestar fundos com juros que as pessoas tinham que devolver com o que retiravam de suas operações comerciais computadorizadas.
E, quase simultaneamente com a operação, esse dinheiro era pago em forma de comissões, remunerações e bônus anuais que traíam a memória dos EUA da Era da Ganância, nos anos que precederam a I Guerra Mundial, antes que se introduzisse o imposto sobre a renda em 1913. O notável em todo este dinheiro era que seus destinatários nem sequer tinha que pagar por ele um imposto de renda normal. O governo o chamou de “ganhos de capital”, o que significava que esse dinheiro era registrado fiscalmente somente como uma fração da taxa com a qual se taxavam os rendimentos.
Tudo isso com a pretensão, é importante dizer, de que todo esse frenético comércio estivesse criando “capital” real. Desde logo, cabe dizer que isso não ocorre, ao menos no sentido do conceito de capital dado pela economia clássica do século XIX. Esse conceito tem sido divorciado das noções de produção de bens e serviços, contratação de trabalho assalariado ou inovação financeira. Nesta novíssima acepção, “capital” passa a ser o direito de organizar uma loteria e recolher os lucros resultantes das esperanças dos perdedores. Mas, então, os cassinos de Las Vegas converteram-se em uma pujante “indústria do crescimento”, manchando a linguagem do capital, do crescimento e da própria riqueza.
Para encerrar as mesas de jogo e saldar dívidas, os perdedores têm que ser resgatados: Fannie Mae, Freddie Mac, AIG. Quem sabe quem será o seguinte? É a única maneira de resolver o seguinte problema que se apresenta às empresas que já pagaram seus executivos e acionistas, em vez de ter colocado essas somas em uma reserva: como recolher seus lucros diante de devedores insolventes e seguradoras quebradas? Estes, os perdedores, também pagaram seus executivos financeiros e seus colaboradores internos (junto com as oportunas contribuições patrióticas aos candidatos políticos em postos-chave das comissões do Congresso, encarregadas de decidir a estruturação financeira da nação).
O planejamento do caos
Sim, porque para que isso funcione, é preciso que seja orquestrado previamente. É necessário comprar políticos e oferecer-lhes um argumento plausível (ou, ao menos, um conjunto bem armado de eufemismos à prova de questionamento da opinião pública) para poder explicar aos eleitores por que era do interesse público resgatar os apostadores do cassino. É preciso ter uma boa retórica para explicar por que o governo tinha que permitir que eles entrassem em um cassino, deixar que ficassem com os lucros de suas apostas e, finalmente, usar fundos públicos para resgatar as perdas dos perdedores.
O que ocorreu nos dias 18 e 19 de setembro levou anos de preparação, escondidos por uma falsificação ideológica patrocinada por think thanks de relações públicas e emitida agora, em condições de emergência, a um Congresso e a eleitores reféns do pânico, justo antes da eleição presidencial. Poder-se-ia dizer que esta é a surpresa eleitoral que setembro reservava. Em condições de crise bem encenadas, o presidente Bush e o secretário do Tesouro Paulson convocam agora o país a uma guerra contra os proprietários de habitações, em situação de quebra técnica. Dizem que essa é a única esperança para “salvar ao sistema”. (Que sistema? Não o capitalismo industrial, nem sequer o sistema bancário tal como o conhecemos).
A maior transformação do sistema financeiro norte-americano desde a Grande Depressão aconteceu, comprimida, em duas semanas: começando com a duplicação da dívida nacional norte-americana quando, no dia 7 de setembro, ocorreu a nacionalização de Fannie Mae e Fredie Mac. (O corretor ortográfico de meu computador não concorda com a utilização do eufemismo “conservadorização” aplicado pelo senhor Paulson para referir-se ao resgate dos “fraudgsters” de Fannie Mae e Freddie Mac).
A teoria econômica poderia explicar que os lucros e o juro eram a remuneração do risco calculado. Mas em nossos dias o nome do jogo é ganhos de capital e apostas computadorizadas sobre o comportamento das taxas de juros, das moedas estrangeiras, dos preços das ações. E quando as apostas dão errado, os resgates são a remuneração econômica calculada de quem contribuiu financeiramente para a campanha eleitoral. Mas agora, supostamente, não é o momento de falar sobre tais coisas. “Temos que atuar agora para proteger a saúde econômica de nossa nação, ameaçada por graves riscos”, disse o presidente Bush no dia 19 de setembro.
O que ele queria dizer é que a Casa Branca deve responder com uma promessa de garantia ao maior grupo de doadores da campanha eleitoral do Partido Republicano – ou seja, Wall Street – resgatando suas más apostas. “Haverá muitas oportunidades para discutir as origens deste problema. A tarefa do momento é resolvê-lo”. Em outras palavras, não convertam isso em um assunto eleitoral. “Na história da nossa nação, ocorreram momentos que exigiram que andássemos unidos, deixando as divisões partidárias de lado a fim de enfrentar desafios de grande envergadura”. Justo antes das eleições! Idêntico disparate pode ser ouvido dos lábios do secretário Paulson: “Nossa saúde econômica exige que sejamos capazes de trabalhar juntos e empreender uma ação imediata bipartidária”. Os locutores disseram que nas manobras do dia estava em jogo uma cifra de meio bilhão de dólares.
Boa parte das culpas deveria recair sobre a Administração Clinton, responsável direta, em 1999, pela supressão da Lei Glass-Steagal, que permitiu aos bancos funcionarem como cassinos. Ou melhor dito, aos cassinos absorverem bancos. Isso é o que pôs em risco a economia dos norte-americanos.
Mas isso significa realmente que a única solução passa por “reinflar” o mercado imobiliário? O plano de Paulson-Bernanke é capacitar os bancos para que possam vender as casas de 5 milhões de devedores hipotecários que este ano terão que enfrentar ou a quebra ou o embargo. Os proprietários de habitações submetidos a juros hipotecários variáveis disparados perderão suas casas, mas o Federal Reserve garantirá às empresas de empréstimo hipotecário crédito suficiente para permitir que novos compradores se endividem o suficiente para conseguir resgatar as hipotecas lixo das mãos dos apostadores dos cassinos que são seus atuais possuidores. Com o que se ganha tempo para que uma nova bolha financeira acuda em resgate das instituições de empréstimo e dos empacotadores de hipotecas podres.
Nova guerra, novas ficções
Os EUA entraram em outra guerra, uma guerra para salvar os comerciantes de derivados computadorizados. Assim como a guerra do Iraque, esta nova guerra baseia-se muito em ficções e, como na guerra do Iraque, o país entra nela sob a pressão de condições de aparente emergência. Também como na guerra do Iraque, a solução proposta guarda pouca relação com a causa que provocou o problema. Esgrimindo razões de segurança financeira, o governo considerará como boas as Obrigações de Dívida Colateralizada (ODCs) que Warren Buffett chamou de “armas de destruição financeira massiva”.
Não é por acaso que esse esbanjamento de dinheiro público está sendo manejado pelo mesmo grupo que tão piamente alertou o país sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. O presidente Bush e o secretário do tesouro declararam tão ricamente que este não é o momento para desacordos partidários a respeito da deriva da política pública em favor dos credores e não dos devedores; que este não é o momento de converter em assunto eleitoral o maior resgate já registrado nos anais da história eleitoral; que não é o momento adequado para debater se é bom “reinflar” o preço dos imóveis a níveis que seguirão obrigando os novos compradores de casa a endividarem-se até o ponto de ter que gastar em habitação cerca de 40% de seus rendimentos.
Recordem a época em que o presidente Bush e Alan Greenspan informaram aos norte-americanos que não havia dinheiro para financiar a Seguridade Social, porque em algum momento futuro (dentro de 10? 20? 40 anos?) o sistema teria um déficit de 1 bilhão de dólares, distribuído ao longo de muitos anos, soma irrisória diante do resgate que está sendo promovido agora. A moral da história era que se não podemos imaginar uma forma de pagar esse sistema no longo prazo é melhor deixar cair agora mesmo o programa assistencial. O senhor Bush e o senhor Greenspan garantiram na época que tinham uma oportuna solução. O Tesouro poderia canalizar o dinheiro da Seguridade Social e dos seguros médicos para os bancos Bear Stearns, Lehman Brothers ou seus pares, para que eles o investissem a um “mágico juro composto”.
O que teria ocorrido se a Seguridade Social tivesse feito tal coisa? Talvez tivéssemos assistido nestas duas semanas à entrega aos apostadores de Wall Street de todo o dinheiro acumulado desde que a Comissão Greenspan resolveu, em 1983, deslocar a carga fiscal sobre as retenções salariais reguladas pela FICA (Lei Federal de Contribuição à Seguridade Social). Não são os aposentados que se pretende resgatar, mas sim os investidores de Wall Street que assinaram papéis dizendo que estavam em condições de enfrentar a perda do dinheiro jogado. A consigna eleitoral dos republicanos este ano deveria ser: “Seguro de jogo, não seguro de saúde”.
Em seu célebre livro “Caminho da Servidão”, Friedrich von Hayek e seus meninos de Chicago insistiam que a servidão viria da planificação e da regulação estatais. Essa visão caminhava na direção contrária a dos reformadores clássicos da Era Progressista, que concebiam a ação do Estado como a do cérebro da sociedade, como a linha diretriz para modelar os mercados e liberá-los dos especuladores rentistas, ou seja, da renda que não fosse contrapartida do desempenho de um papel necessário na produção.
A teoria da democracia fundava-se no pressuposto de que os eleitores atuariam movidos pelo próprio interesse. Os reformadores do mercado partiram de uma feliz suposição paralela, segundo a qual os consumidores, os poupadores e os investidores promoveriam o crescimento econômico atuando com pleno conhecimento e cabal compreensão das dinâmicas em ação. Mas a mão invisível terminou resultando em fraude contábil, empréstimo hipotecário podre, informação privilegiada e fracasso em controlar os crescentes gastos da dívida conforme a capacidade dos devedores para pagar. É todo este caos, aparentemente legitimado por alguns modelos de comércio eletrônico, que acaba de ser socorrido pelo Tesouro dos EUA.
Michael Hudson é ex-economista de Wall Street especializado em balanço de pagamentos e bens imobiliários no Chase Manhattan Bank (agora JPMorgan Chase & Co.), Artur Anderson e, depois, no Hudson Institute. Em 1990 colaborou no estabelecimento do primeiro fundo soberano de dívida do mundo para Scudder Stevens & Clark. Hudson foi assessor econômico chefe de Dennis Kucinich na campanha primária presidencial democrata e assessorou os governos dos EUA, Canadá, México e Letônia, assim como o Instituto das Nações Unidas para Formação e Pesquisa. Destacado professor e pesquisador na Universidade de Missouri, na cidade de Kansas, é autor de numerosos livros, entre eles "Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire".
Tradução do inglês para o espanhol: Ricardo Timón
Tradução do espanhol para o português: Marco Aurélio Weissheimer
Texto traduzido a partir da versão em espanhol publicada no site Sin Permiso.
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